modular é necessário







quarta-feira, 6 de novembro de 2013

entrevista - por Jovino Machado

05/11/2013 21:34:00
Patricia Maês: escritora, musicista, atriz



Por Jovino Machado



                                                                        Foto: José Rubens Moldero
1: Quem é Patricia Maês?
Patricia Maês é uma pessoa que indaga. Vivo me perguntando para que serve isso ou aquilo, e no fim me vejo querendo achar graça em viver no mundo sem nexo. Quando sou bem sucedida e acho o caos até gostoso, é o meu melhor dia. Nem sempre é possível, mas eu não desisto.
2: Quais foram os seus primeiros contatos com a literatura?
Sempre me senti atraída pelo objeto livro, e por isso desde pequena gostava de remexer nas estantes de casa. Gostava das enciclopédias, e ganhava muitos livros infantis. Tive coleções maravilhosas, e acho que isso definiu meu respeito pela escrita. Minha brincadeira mais comum era abrir as portas de um armário grandão que tinha lá em casa, cheio de livros, e fingir que ali era uma loja. Eu imaginava pessoas chegando e me falando de alguém, sua personalidade, seus gostos, e aí eu indicava um livro.
3: Existe algum fato ou acontecimento entre a infância e a juventude que determinou sua opção pela literatura?
Quando descobri a geração do Fernando Sabino (minha grande paixão na infância), e lia os contos e as crônicas onde ele falava da convivência com seus contemporâneos, eu achava que um dia também moraria no Rio e os encontraria para aqueles cafés no meio da tarde. Eu nem me tocava que o tempo passaria, eles ficariam velhos e até morreriam. Era o Paulo Mendes Campos, o Otto Lara Resende, o Hélio Pellegrino, o Drumond, enfim, e eu me imaginava fazendo parte da turma, conversando com eles sobre nossas produções. Eu tinha uns dez, doze anos...
4: Como foi a sua experiência com Antunes Filho no Centro de Pesquisas Teatrais?
O Antunes tem a fama de bravo, mas tive sorte com ele, que gostava de mim e me achava talentosa. O máximo que ele me disse em tom reprovativo foi que eu era uma pessoa muito espaçosa. Isso vindo dele, que colocava todo o elenco abaixo de zero diariamente, foi até um elogio. Mas o Antunes tem tanto a ensinar sobre ser de fato um artista, que mesmo tendo ficado pouco tempo no CPT aprendi demais com ele. Tanto que me arrependi quando pedi para sair. Perdi meu tempo nessa ocasião, logo eu que era cheia de energia e sonhos.


                                                                                                     Foto: Maurício Piffer
5: O que te dar mais prazer? Tocar, representar ou escrever?
Tudo é muito importante para mim. O tempo de musicista foi determinante para “calibrar” a minha percepção, experimentando estados de concentração que só o contato com o aprimoramento do som proporciona. Lidar com afinação muda a nossa percepção da vida. Mas escrever é muito melhor agora, é algo que faço na intimidade, em casa e calada, que é a maneira como eu mais gosto de ficar.
6: Fale sobre a montagem da peça "Os ratos soltos na casa".
Fazer essa peça foi uma delícia. Primeiro porque era um desafio, um texto difícil, com falas enormes e um tema cheio de psicologismos para se explorar. Fui até o limite entre a dramaturgia e a literatura, mas acabou funcionando satisfatoriamente. Minha personagem se alternava entre uma mulher histérica, neurótica e esquizofrênica, e isso era bem desenhado. Exigia muito de mim fisicamente, mas me dava um grande prazer.
7: Como foi a criação das letras para algumas canções do CD "Horizonte Vertical" de Lô Borges?
O trabalho do Lô é muito responsável pela construção de todo o meu universo estético. Gosto das suas composições desde muito cedo, e na adolescência eu sonhava em tocar com ele. Quando me vi virando sua parceira, senti só gratidão pela oportunidade de dividir composições com um criador que é um verdadeiro gênio. No caso do Horizonte Vertical, eu conhecia muito bem as músicas antes mesmo de pensar em fazer as letras para elas. Ouvia as músicas com o Lô, ia às gravações, e quando resolvi que podia contribuir, saiu tudo muito rápido, porque eu já amava as canções e já tinha incorporado muito tudo aquilo.
8: Sua formação musical erudita tem influência no ritmo de suas narrativas literárias?
Sim. Costumo dizer que escrevo como quem faz música. Ter tocado um instrumento tão difícil me fez experimentar estados de concentração muito profundos e isso acaba facilitando para que eu use a imaginação ao entrar em universos desconhecidos, no mundo das personagens que invento, certamente. Vejo minhas narrativas como linhas melódicas se desenhando, definidas pelo tamanho das sentenças, por exemplo e principalmente. Quem tem a oportunidade de viver no universo dos sons e depois vai para outras linguagens, tem um elemento a mais de sutileza para contar. É assim com quem dança também. Tenho uma amiga bailarina que virou uma grande roteirista de cinema. No caso dela, a música foi fundamental também como suporte para se jogar em outras linguagens.
9: A bruxinha ucraniana Clarice Lispector ofuscou a geração dela. O que ela representa hoje para você como inspiração?
Quando eu ainda tocava e achava que não havia meio mais puro de expressão do que a música, a Clarice me provou que viver no meio das palavras era igualmente promissor quanto a ter recursos e ferramentas de expressão e comunicação. Ela mudou tudo na minha vida. Devo a ela grandes deslumbramentos e a acho inigualável.
10: Como foi o seu encontro com Lygia Fagundes Telles? O que ela disse pra você?
Eu sempre encontrava com a Lygia em palestras de outros escritores, mesas redondas em bienais do livro, etc... e acontecia de sempre sentarmos lado a lado, o que me deixava muito feliz. Um dia, conversando com ela, contei que era escritora e atriz e tive uma surpresa. Ela praticamente colocou o dedo em riste na minha cara e disse que “Nós, mulheres das letras, não podemos ficar peladas!!!”. Ela foi categórica: “Olha, você é atriz e é uma moça bonita, mas fique atenta, se você escreve, não fique pelada!” E repetia: “Nós não podemos ficar peladas!!!” Achei fantástico porque ela, uma senhora, ainda se incluía na história toda dizendo “nós”. Ela é demais.
11: Nietszche afirmou que um artista é estimulado por duas questões fundamentais: ou por ódio ao mundo ou por amor a ele. Por que você escreve e para quem você escreve?
Acho que é tanto por ódio quanto por amor ao mundo. Não separo essas duas forças. Eu escrevo para aprender a viver com as minhas limitações e reclamar disso, de alguma forma. Agora, para quem?... Penso que eu talvez escreva para esses que também não se sentem muito à vontade com as coisas do jeito que elas são, os que querem mais delicadeza, um maior número de túneis com uma luzinha lá no fundo.
12: Como é o seu processo de criação? Existe algum ritual na hora da escrita?
Não tenho um ritual. Tinha quando era violinista. Colocava uma música antes de começar a estudar, e ficava sentindo o instrumento vibrar nas minhas mãos para abrir o dia. Hoje sento-me para escrever a qualquer hora, e as coisas acontecem.
13: Quais são os autores que influenciaram a sua literatura?
Como já contei, o Fernando Sabino foi fundamental. Ele me fazia querer viver como ele, ter o escritório dele, os amigos, etc... Depois vieram as mulheres, como Clarice, Lygia, Elizabeth Hardwick, Dorothy Parker, Virginia Woolf, e até a Margareth Atwood. Foi mais ou menos por aí.
14: Fale sobre o seu novo livro que está no prelo.
Ele se chama Tempos de Olívia, é todo escrito na primeira pessoa e no presente, o que foi um desafio muito saboroso. Estar no aqui e no agora o tempo todo nem sempre é fácil. O livro fala sobre como uma artista de sucesso se comporta quando pela primeira vez em sua vida se vê em um hiato de criação. É período de entre-safra e ela não sabe como viver assim, sem um projeto que substitua o outro imediatamente. Então lhe aparecem questões sobre as razões de criar, os motivos que a mantêm ligada a esse universo artístico. Ela começa a medir sua vaidade, sua segurança nos talentos que lhe são atribuídos, e enfim, é instaurada uma crise em seus dias e ela pena um pouco para compreender e superar.
15: O que é mais importante na vida para Patricia Maês?
Eu queria ser realmente útil. Tenho uma amiga que ajuda pessoas na melhor idade, quer abrir uma ONG ou uma OSCIP para resgatar animais abandonados, e observo tudo isso pensando que aí está alguém que faz realmente uma grande diferença. Preciso aprender a fazer o necessário. Quando alguém é despertado de alguma forma por algo que escrevi, já é um caminho mas não é tudo. Se tenho uma meta essa meta é começar a crescer nesse sentido.


                                                * * *
 
Jovino Machado (Belo Horizonte/MG). Formado em Letras (UFMG). Atua como restaurateur. Publicou 10 livros, entre eles Trint´anos Proustianos (Mazza Edições, 1995), Disco (Orobó Edições, 1998), Samba (Orobó Edições, 1999), Balacobaco (Orobó Edições, 2002) e Fratura Exposta (Anomelivros, 2005). Recentemente, 2009, também publicou a plaquete poética Meu Bar Meu Lar. Próximo lançamento: Cor de Cadáver (Anomelivros, 2009). Participações em Dimensão (Revista Internacional de Poesia, Uberaba, MG, 1998), A Poesia Mineira no Século XX (Imago, Rio de Janeiro, 1999), A Cigarra-Revista de Poesia (Santo André, SP, 2000), O Melhor da Poesia Brasileira – Minas Gerais (Joinville, SC, 2002), antologia poética O Achamento de Portugal (Fundação Camões, Lisboa, Portugal e Anomelivros, 2005), Suplemento Literário de Minas Gerais (2007) e Rascunho (2008). Menção honrosa na revista literária da UFMG (1991) e terceiro prêmio de Poesia Falada de Campos dos Goytacazes (RJ, 2002). E-mail: jovinomachado@yahoo.com.br  Blog: http://jojomachado.zip.net  

 Licença Creative Commons

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Blog novo

Atenção:
Para deixar seu comentário em qualquer uma das postagens, vá para o novo blog de mesmo nome, só que com o número 2.
http://patriciamaes2.blogspot.com.br/

Este blog tem um bloqueio que não consegui desativar, e que impede que os comentários apareçam.
Por essa razão temos o blog novo.
Aguardo vocês por lá.
Obrigada

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

fragrância liberdade

                                                                                                Francesca Woodman


A vida de Helena no presídio, onde a hora do banho era o recomeçar de cada dia, estratégia simples de manutenção da autoestima, esse mistério alimentado pelo fato de manter perfumado o possível, sentir-se limpa apesar de tudo. Talvez por ser isso, limpa, o oposto simbólico do que poderiam pensar dela aqueles que ficaram do lado de fora, quem a viu ser condenada, ganhar a ficha permanentemente carimbada, e a mácula que sobreviveria à sua história.
O tempo. As horas que passava dobrando e redobrando roupas em duas pequenas gavetas. O pouco que tinha e que ela experimentava, costurava ajustes, mantendo-se vaidosa e magra. Tentava calcular sobre os anos que teria ali dentro, o quanto se sustentaria conservada caso não desistisse dos rituais tão ligados à integridade desse ser que no seu íntimo, chamava a si mesma de menina. Pelo menos era assim até entrar ali. E era preciso ter persistência. Ficava perto das colegas que entendiam suas motivações, e as que não a compreendiam em tão fervoroso empenho para ser positiva, ela tentava ignorar. Das colegas próximas, influenciou muitas a ter esses específicos cuidados, mostrando a simplicidade de se caprichar no banho, apropriar-se de prazer no simples gesto de cuidar dos cabelos, e o quanto isso estava intimamente ligado a ter esperança. Todo o fazer estava preso a elas mesmas, os corpos, entrada de seus espíritos castigados além da conta.
Sim, ela sabia ser contagiante. Dizia de formas variadas ser preciso superar o desânimo vindo do nojo pelos azulejos que ganhavam respingos do banho de tantos outros corpos. O importante era manter o foco no perfume que ficaria daquele bravo ato. Abstrair o que não poderia ser contornado, focar na construção e conquista da delicadeza de se sentirem moças de asseio exemplar, a vida com dignidade mesmo em clausura. A sensação extraída disso lhes garantiria a vida, e a sensação era a cada manhã nova, de uma leveza e manha, como só uma menina de fato pode inspirar.
Assim era o mundo de Helena, penteando-se tão cedinho e escolhendo o vidrinho de suas loções baratas trazidas por sua única visita. Ela era feliz naquele momento em que o cheiro doce e fresco se espalhava por toda a cela, e de lá agradecia a Deus por estar tão perto da verdade de sua alma mesmo estando tão longe do que chama de casa.
A mulher que por um passo em falso seria para sempre chamada de não pura, não o suficiente para viver além do mundo emparedado. Durante a permanência nesse mundo, ela teria de ir até o fundo das outras paredes, as da vida de antes, descobrir o que nela fez abrir desde muito cedo os portões do inferno. E o inferno hoje só não lhe parece mais assombrado porque em seu coração que não desiste, uma voz adverte para não concordar de todo com o veredicto, não se permitir ver tudo caindo em desgraça sem retorno. Haveria um ponto de mudança. Um mergulho corajoso dentro de sua falha e depois no nascimento do que veio a dar nisso, a nova condição interior, ajudaria a encontrar o antídoto do destino mau. A virada.
Mas além do feito ruim, existe o querer de agora, também já feito, e isso era a certeza da vida que permite salvação, a solução pronta onde menos se espera. Helena escolheu ter a fibra, o tônus no sorriso, ainda que garimpado em duríssima escavação. Ela escolheu escolher.
Nem parecia a mulher da rebelião, ferindo seus dedos até os ossos nas grades e quebrando o punho na parede quando viu a companheira de cela morrer enforcada. Era tanto o que já havia tido, sem contar quando escapou das facadas mas teve o estilhaço de um vidro lhe rasgando o rosto. Ou o homem tentando molestá-la com a promessa de dois cigarros, a doença de cada verão, o parto da moça que viu a criança morrer no chão gelado, a comida fazendo vomitar três vezes no mesmo mês, o tumor sem tratamento da jovem que dizia não querer sucumbir, a goteira atormentando as noites, o ralo devolvendo o esgoto, baratas passando no teto, os sapatos roubados, dentes que doem, e a lembrança detestável do cheiro de colchões queimando no corredor, a fagulha lhe atingindo em um dos olhos sem piedade.
Mas no dia do fogo pode ver finalmente, muda de choque, que saindo dali também outro incêndio a esperava. A queimação por estar desprovida de toda proteção necessária caso visse a rua novamente. Conhecia o flamejar cruel de querer gritar já sabendo que todos desviariam.
Por isso os cuidados ao enfeitar a cela, pintar a prateleira dos vidrinhos, bordar o nome na fronha, apertar a alça da blusa. E na hora do banho ela reza pela moça bonita que em minutos voltará a ser imaculada, impecável e coberta de fragrâncias de frutas e flores.
Helena é pela manhã, sempre de novo, a flor de menina. Para todo efeito viva, de insuspeitável doçura morta.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

silenciosa




O recomendado pelo pedreiro que faz a manutenção dessas coisas no edifício é mudança no banho. A hidromassagem vaza e o apartamento logo abaixo recebe infiltração em forma de uma enorme mancha escura por todo o teto. Será necessária a total remoção da banheira para se consertar o que fez a água escoar para onde não deveria.
Mas ela não tem dinheiro. A aposentadoria precoce, devido a um problema sério de saúde, não lhe garantiu receber quantia justa, e no meio de tanta perturbação na hora dos acordos para que esses trâmites fossem encerrados de uma vez por todas, ela achou por bem não reclamar de nada e se contentar com o estabelecido.
                  A reforma está fora de alcance. E isso muda não apenas os banhos, mas a sua principal atividade. Há exatos nove meses, a chama de ser um bicho social se apagou dentro dela, e desse modo lá se foi a vontade de ser vista ou necessária. Viver o silêncio em um mundo observado apenas pela janela ficou sendo a melhor opção. E ela encarou como trabalho, fez isso para sentir-se dona de um projeto de vida, coisa que justificaria a reclusão e a pouparia, sobretudo, de questionar o medo dos novos estímulos. Pensou nos artistas que escolhiam o isolamento como condição primeira para chegar em realização e dignidade. E ela era digna com toda a quietude, não ajudava em nada, mas não fazia mal a ninguém, não incomodava e nem divergia. Como isso era bem vindo. Estar no mundo da forma mais delicada, não pertencer a ele ostensivamente, querendo coisas, engendrando mudanças. Nunca mais, nada disso. Ela só queria dar paz e receber indiferença, aquela que nunca a cobraria de ter um pouco mais ou de parecer adequada. Estava, inclusive, ficando antiga, as roupas tratadas com carinho para que demorassem a envelhecer ficando inevitavelmente fora de moda. Mas não ligar era parte importante do desprendimento.
E foi quando assumiu a nova condição, a não dependência de aprovação, que resolveu ter um luxo e saber chamar a isso de prazer. Mandou instalar o pocinho com jatinhos de água provedores do relaxamento e então a brincadeira da vida ainda não havia acabado de todo. Duas vezes ao dia se despia e entrava no particular recanto de não dar satisfações a ninguém. Os  momentos na água seriam as sagradas horas de desfrutar ser ela mesma sem aqueles receios habituais, como quando pensava em ir à rua fazer compras. Com isso gastava também menos dinheiro, porque encontrou um divertimento ali no lugar mais escondido da casa, o banheiro bolha de indiscutível confiabilidade, onde nada escoava da pouca renda, nada era cobrado de seu tempo de fazer só o que quisesse.
No fim da tarde, quando já começava a escurecer dentro da sala de banho e esconderijo, a água parecia mais interessante. A hidromassagem era desligada e o silêncio só se quebrava com pequenos pingos, gotas diminutas, frágeis como ela mesma se via. E aí então não estava mais só em seu pequeno estar, cuidando para ocupar espaço de maneira miúda.
Mas a paz aquática estava agora ameaçada. O pedreiro dizendo que essa e aquela torneira não deveriam ser abertas jamais. E quando o homem saiu do apartamento ela se viu com o problema: o que será de meus momentos? Transitou entre os quartos e a sala por horas, refazendo contas mentalmente, até ter certeza de que as finanças não comportavam o que lhe estava sendo proposto. Teria de voltar aos banhos comuns, sem os jatinhos e bolhinhas com sons de natureza. Tudo bem, repetia, e chegou a dizer em voz alta, no tom de resignação completa.
No chá das três, pensou que seria o momento de submergir. Lembrou que vez ou outra até levava a xícara para a banheira. E lá ficava, beneficiando-se dos aromas misturados, água pura, límpida, e o chá. Erva cidreira, doce, camomila, tudo sempre calmante. Mas agora não mais a imersão, não mais o outro mundo onde os medos se molham e dissolvem escorrendo no vapor do azulejo. Bom mesmo era estar envolta no líquido quente, a água na pele que nem carinho mais espera.
Os azulejos estampados de verde musgo com pinceladas de rosa pálido são muito reconfortantes. Folhagens sobem pelas paredes com singelas florzinhas que dizem muito do novo estilo discreto, e do tipo que, mal se viu, já se esvai. São flores nubladas e derretidas, cores que nunca agridem.
E então o chá fica diferente no dia da notícia. A grande distração, afinal chamada de prazer, havia sido vetada. Restava a televisão, e era só acioná-la. Mas nada daquela chuva de cores e sons desordenados, o mau gosto das vozes como se a vida fosse só festa lhe agradava mais. Repelia tudo o que se parecesse com aquilo. Livros? Já havia experimentado mais de uma vez todos os da estante. Ginástica, talvez, mas o corpo pedia a calma dos iogues, vivida alegremente na cápsula de mergulhar. Tudo teria ido pelo ralo, tudo lhe teria sido negado por causa da mancha no banheiro alheio. Nenhum sentido.
De repente achou de grande brutalidade essa nova condição. A mulher quieta ali, pouco parou nesse tempo todo até para imaginar que existia gente no andar abaixo. A aquisição da banheira era um ato lavrado de que agora ela se bastava, tanto que a mini natureza estava garantida para não precisar atravessar o caminho de mais ninguém. Assim, a razão do acontecimento lhe escapava com gravidade. E aos poucos foi se tornando inconformada.
No dia seguinte se conteve triste nas horas do tradicional descanso. Olhou as paredes da cozinha e leu o folheto de ofertas deixado na soleira da porta. Nem o chá tinha muito sabor, em tudo faltava aquela energia que ainda a fazia pensar em ser alguém. Dessa forma, sem objetivo de agrado nos dias, ela passava a se parecer cada vez mais com as flores desbotadas nas folhagens subindo pelas paredes. E visitava com frequência seu espaço sagrado, acariciava o ladrilho onde pousava a xícara habitualmente, vendo tudo com desgosto.
As contas eram refeitas de tempos em tempos, números no caderno fazendo o mesmo percurso, mas nada de novidades. A falta de folga nas finanças ainda não tinha lhe surpreendido como dessa vez. O comedimento era encarado sem desconforto, porque precisava cada vez menos de requintes ou mimos. Estava vivendo fase de grande satisfação e podia se dizer abastada na medida em que não esbarrava em controvérsias, e por controvérsias ela entendia qualquer contato, de qualquer espécie, com qualquer pessoa.
Tentou se instalar dentro da banheira seca para tomar o chá, imaginou no fim da tarde os pingos companheiros e cantarolou uma música apreciando o eco que ali fazia. Depois viu que não precisava de música.
Tentou de tudo, ficou nua e olhou seu corpo, imaginou que era bonita, forçou ao máximo até chegar em um prazer mísero que a fizesse lembrar da entrega ao mundo impenetrável sobre o qual ninguém jamais saberia e que nunca precisaria dividir. O mergulho era, portanto, como a liberdade, era como ter segredos a mais, como criar, como se inventar. Sem o prazer das águas ela estava enredada no universo das repetições. Tinha de ficar perambulando, o dia sem quebras de acontecimentos relevantes dividindo o tempo, dando sentido às horas de sobra ao redor.
Então resolveu fingir que não sabia de nada. Abriu as torneiras, encheu a banheira e se recostou para apreciar a madrugada de uma noite em que não podia dormir. Fez isso continuadamente, certa de que nada aconteceria, afinal, o que uma mancha no teto poderia denunciar era mínimo. Se enganou.
Passou pouco tempo até que tocassem a campainha. A mulher abriu a porta assustada, não se relacionava com os moradores do prédio. O vizinho disse saber do uso da hidromassagem, porque além de ouvir o barulho da água, a mancha estava ficando mais intensa. O moço perguntou se o conserto do vazamento seria realizado e ela, tão desprevenida e sem malícia, disse a verdade, disse não ter dinheiro esperando talvez compreensão. Percebeu que ele não podia crer em tanta simplicidade para comunicar o voluntário agravamento de um problema como aquele, e que a tratou como alguém com certa debilidade. Ela preferiu abstrair esse detalhe sem se ofender, prometendo não fazer mais nada. Tudo para obter logo o alívio de fechar a porta e encerrar contato.
Mas nada parou. Chás e imersão, relaxamento e indiferença. As semanas passavam e ninguém se manifestava. Assim pensou em tudo finalmente definido, vizinho consciente das suas dificuldades, o mundo em concordância com o que ela podia fazer.
Mas chega a tarde de surpresa ainda pior do que o estranho à porta. No chão se via uma poça de água escura, água brotando de todos os cantos daquelas paredes de folhagens tão tranquilas. O líquido quase negro era espesso, tinha aspecto viscoso e começava a exalar cheiro estranho. Curiosamente passou a achar a banheira um cubículo pequeno demais. Ela queria sair dali e não conseguia, porque pisar naquele mistério seria impossível. A campainha e o telefone tocavam ao mesmo tempo, quando então viu tudo fora de controle.
Venceu a aflição do lodo, vestiu o primeiro vestido que viu pela frente, e, ainda molhada, abriu a porta. O telefone explodia, e no corredor do prédio várias pessoas a olhavam indignadas. Parecia que o vazamento tinha tomado proporções assustadoras, um cano havia se rompido e a água escura escorria pelas paredes de vários dos apartamentos. E não era o caso de se explicar, afinal fora pega no pulo, molhada e recém saída do banho causador da encrenca.
Depois de longos minutos de mal estar, sem poder se defender, chegou finalmente a hora de se recolher e planejar como limpar tudo aquilo. A banheira estava cheia, o chão alagado, a sujeira vazando para o quarto, corredor, tomando a casa.
Ficou sem ação. A campainha tocou novamente, dessa vez com gente querendo olhar o estrago, oferecendo o que deveria soar como ajuda, mas que soou muito mais como intromissão. Estavam todos loucos para ver a casa da reclusa misteriosa.
Ela disse não à expectativa geral, e a insistência de todo o prédio se juntava à dela mesma em não saber o primeiro passo para começar a organizar-se.
Até que quis voltar à proteção na hora em que o barulho das chamadas era um só grito sufocante. Passou dessa vez pela sujeira já sem nojo, não sentindo nada. E aí percebeu os sons cessando subitamente. Viu a xícara de chá esperando com o líquido frio, o próprio tanque todo frio. Como poderia ter se esquecido? Entrou novamente no banho, suspirou relaxada e abriu as torneiras todas. Viu a água transbordando, o calor voltando, e não ligou. Continuou bebendo tranquila, até que ouviu o estrondo vindo da sala e atinou na hora que era a porta sendo arrombada. O máximo que conseguiu foi no ímpeto do desagrado atirar a xícara na parede, mas logo retomou a calmaria.
O homem da manutenção apareceu e a encontrou inerte, olhar fixo para os azulejos. Constrangido, chamou várias vezes, mas não ouviu resposta.
Nesse dia, durante toda a tarde, o apartamento foi visitado pelo edifício inteiro, o recôndito sendo espiado por cada morador, todos em fila indiana no corredor dos quartos, muita organização e atenção para a apreciação da exposição. Ela era parte de inédita instalação que atraía expectadores sedentos e curiosos com o que essa mulher tão calada pode ter de mais secreto.
Os olhares eram cheios de significados, mas ela escolhia não encarar para não ter de classificar. Sabia só da pura e insensível curiosidade, morbidez exposta ali como socialmente aceitável, tentação de invadir e deixar escancarado que viver em reclusão não poderia ficar por isso mesmo. Nunca. Não neste mundo de gente normal pedindo relações, exigindo que sejamos todos razoáveis na boa vontade de participar.
A fila andava vagarosa e a estátua inerte se fixava nas flores cor de rosa, ainda de alguma forma imbuída de espírito estóico, sem baixar a cabeça, mas também sem reflexo para se cobrir. Ela se protegia, mas sabia que o fazia de um jeito incompleto. E de qualquer forma nada mais contava, a bolha havia sido estourada, o invólucro protetor das questões mais mundanas rompido para nunca mais voltar a ser o mesmo. Nem que ganhasse o dinheiro necessário para comprar outra banheira, reformar a casa toda, e nem se com isso ela ganhasse mais conforto. Agora era mesmo tudo pelo chão, junto com a água preta.
A vida ali já não era nada. O que lhe parecia ser o acabado de antes se tornava, aos poucos, o oposto da não vida deflagrada nesse dia, resultado do contato brusco com a desenfreada falta de comedimento do universo. Há nove meses ela quis dar seu último basta e agora via o nascimento da monstruosidade tão temida. Atirar aquele objeto na parede ilustrava o que já podia suspeitar de todo o esgotamento, passageiro freqüente nos dias, e então tal sentimento assumia outra importância nessa hora.
Só quando escureceu a visitação parou. No anoitecer saiu enfim do encantamento sobre o qual não havia mais nada que pretendesse compreender. Conseguiu levantar, deixar o poço gelado e alcançar a toalha, enrolar o corpo que já havia sido parte das coisas que guardaria do mundo. Cobriu-se, mesmo sabendo que nunca mais deixaria de estar exposta. Suspirou sem sentimentos, e como se fosse nada, colheu os cacos da xícara quebrada há horas. Seus cabelos voaram sobre o rosto, e como gesto natural fechou a janela deixada aberta. Era tudo inútil, já que sabia que nunca mais pararia de sentir o frio.
A água no chão permanecia. Escura, difícil, errada. Mas a água estava, ao menos, silenciosa.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Feira de Frankfurt

A Cubzac leva a obra de seus autores para a Feira do Livro de Frankfurt 2013, em outubro. A editora fará parte do stand do Brasil, país homenageado na Feira.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

entrevista - agenda

http://youtu.be/-yn902Emg-c

Crítica de Cássio Lignani sobre "O céu é meu"

melancolia e comedimento
Em O céu é meu, primeiro livro de contos de Patricia Maês, lançado neste ano pela editora CUBZAC, não há exageros. Nada está em demasia, e os contos são como receitas do inesperado, das quais o sabor deixado não revela seus elementos e provoca o leitor, abandonado em sua avidez por um pouco mais, sufocado por um prazer interrompido. Deixar-se tocar por cada um de seus contos é entregar-se ao vazio existencial e tratar de preenchê-lo pelo prazer dos sentidos, pela ruptura com um olhar naturalizado e por uma busca silenciosa e solitária por um significado.

Essa escrita comedida revela a autora não só como alguém que manipula bem a linguagem literária, mas também como uma artista que deixa entrever seu pensamento acerca da arte, em suas diversas linguagens. E por sua escrita suave e tão delicada, talvez seja possível imaginar como Patricia Maês, que tem formação musical e em artes cênicas, conduz seu processo criativo; da mesma maneira como a narradora do conto “Pianíssimo” imagina o paralelo que há entre a maneira com que um músico toca seu instrumento e sua forma de viver a vida.

À medida que a leitura avança pelos 15 contos do livro, percebe-se que a sensibilidade tem um papel fundamental para atingir certa clareza da vida. A educação estética eleva a alma, e o sublime é o meio para se atingir esse local elevado, do qual se torna possível observar a vida além da enevoada realidade cotidiana. Assim, não só em “Pianíssimo”, mas também no conto que dá nome ao livro, “O céu é meu”, e em “Retrato”, é possível encontrar a arte como espaço de liberdade, de transgressão, de cores, de fôlego, que oferece aos personagens uma chance de encontro, um caminho para o autoconhecimento, uma alternativa além da rotina pálida e pragmática.

Quando não há nenhuma menção evidente sobre a arte nas narrativas, outras experiências de efeitos semelhantes se infiltram na vida dos personagens. “Silenciosa” fala sobre a viuvez de uma mulher que, isolada e alheia ao mundo exterior a seu apartamento, recolhe-se no prazer – sensorial – de seus longos banhos. “Fragrância Liberdade” apresenta uma prisioneira que encontra no perfume sua “doçura morta”, a possibilidade de se manter sã, a liberdade que contrasta com sua prisão e o cuidado em um espaço de miséria. Em “As vozes das pedras de cada coração”, são as memórias e os segredos que vão romantizar o consumo e atrair a personagem a preencher o seu espaço vazio.

Existe uma coerência na abordagem dos contos, que parecem compor em silêncio esse lugar que compensa uma insatisfação – ainda que inconsciente. Apresentam-se também outros temas, como a infância, não só como nostalgia de um tempo de mistificação, a exemplo de “Um Navio”, mas também sua definição como tempo de liberdade e a possibilidade de revisitá-lo na música, como em “Onde mora a liberdade”, e a libertação do amor repressor dos pais, em “Quem matou quem”. O conto “Quem vive a trabalhar” trata do querer mais, da vida que se esvai no exercício cotidiano do nada, das distâncias que um é capaz de impor sobre sua memória e sobre seus próprios desejos.

Há ainda os encontros, a relação dos casais, as insatisfações veladas e a construção da cumplicidade que existe entre aqueles que de alguma maneira se amam ou se amaram, como em “A horda do bem” e “Só”. Em “Conto com sentido”, a personagem trabalha sua respiração e reflete sobre a vida serenamente em meio ao caos do trânsito e, embora demonstre todo seu autocontrole pelos exercícios de respiração, não impede que esse caos interfira em sua vida e lhe ofereça um reencontro inesperado, que sugere uma ruptura do comedimento.


Patricia Maês nos apresenta um mundo em tom melancólico, deslocado e comedido, produz o incômodo e constrói o silêncio, como se desejasse gritar.  Maria Rita Kehl, ao escrever sobre a melancolia no pensamento ocidental, rememora a relação aristotélica entre a criação e o estado de alma melancólico, que induz o artista a arriscar ao chegar ao abismo de ter sido e não ser mais, para tentar produzir um novo sentido, um novo ser[1]. João Castello, ao escrever sobre o tema tomando João Cabral como exemplo, define a melancolia como um vazio – no peito – construtivo, do qual escorre um “humor doloroso e inexplicável”, e conclui que, “se há falta, há poesia”[2]. Essa falta – melancólica – se manifesta no processo de Patricia Maês ao dar vida à sua criação. Com suavidade, a autora aos poucos toca esse mesmo vazio e o desejo de ser, fazendo escorrer sua poesia.

Esse novo ser transparece no conto “Para saber”, que nos apresenta a personagem Catarina, jovem viúva, cuja trágica vida é filtrada pelas memórias de infância da narradora. É também dessa maneira que percebemos o vazio no conto “A casa”, que aos poucos vai sendo preenchido e renovado, pois “deixar para trás é necessário”. “[...] É preciso ruptura para que possamos entender o que era o antes de acontecer o agora. E ele não se faz sem violência”, sentencia a narradora.

Os contos de “O céu é meu”, nesse sentido, oferecem um espaço para o leitor se aprofundar com sensibilidade. O resultado é um querer mais, uma insatisfação positiva – como alguém que estica o pescoço para melhor escutar uma nota, e assim, sem perceber, se desperta. Os sentidos são suspirados a cada palavra, a cada silêncio. Patricia Maês conduz seu texto como conta um segredo, oferecendo uma experiência, um encontro e um novo desejo de ser.





[1] Kehl, Maria Rita, Melancolia e criação. In: Freud, Sigmund. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
[2] Castello, João. Uma defesa da melancolia. Jornal Rascunho, março de 2013.

quarta-feira, 20 de março de 2013

A escritora e letrista Patrícia Maês lança o livro de contos 'O céu é meu', em Santa Tereza

Autora é mulher de Lô Borges e já participou de algumas composições do músico

André Di Bernardi Batista Mendes - Estado de Minas Publicação:20/03/2013 08:33Atualização:20/03/2013 09:58
Depois de dividir canções com Lô Borges, Patrícia se dedica à ficção (Elderth Theza/Divulgação)
Depois de dividir canções com Lô Borges, Patrícia se dedica à ficção
A escritora Patrícia Maês é paulista, mas escolheu Belo Horizonte para viver. Mulher do cantor Lô Borges – ela chegou a escrever, em parceria com o artista mineiro, cinco canções do CD 'Horizonte vertical' –, Patrícia faz nesta quarta-feira, às 19h30, o lançamento de seu primeiro livro, 'O céu é meu', no Godofredo Bar. De formação musical e teatral, Patrícia resolveu dedicar-se exclusivamente à literatura. Nos contos de 'O céu é meu', a escritora trata de situações cotidianas, sem deixar de lado um mundo onírico, cheio de labirintos e janelas que se abrem para o mistério.

A obra apresenta personagens surpreendentes, que transitam às margens da normalidade numa sociedade que não aceita desvios e é repleta de desvãos e desmandos. A questão do tempo, ou da falta dele, permeia o relato de forma pungente. Todos lutam, sem armas aparentes, pela possibilidade de manter a alma, uma alma individual, única em sua existência de descobertas.

Patrícia lança luzes sobre dores e dissabores ao mostrar pessoas simples que passaram por alguma situação de perda ou privação. Mas, ela deixa claro, existem reviravoltas possíveis. A força do espírito humano torna-se um bom combustível para o surgimento dos textos.

Influências Perto das descobertas de Katherine Mansfield, longe do banal, os textos de Patrícia carregam uma espécie de eletricidade viva. Patrícia escreve com segurança e com coragem. A tarefa não é das mais simples, pois o estilo de Patrícia Maês segue a mesma trajetória, é feito das mesmas dúvidas, dos mesmos mistérios que tanto atormentavam a também escritora Clarice Lispector. Resguardando-se as devidas proporções, a contista deixa-se levar por aquele espanto diante da vida. Os textos de Patrícia carregam boas doses de delicadeza e são cheios de surpresas.

O pequeno trecho do conto “Silenciosa”, um dos melhores do livro, resume toda a sensação de desamparo: “Viver o silêncio em um mundo observado apenas pela janela ficou sendo a melhor opção. E ela encarou como trabalho, fez isso para se sentir dona de um projeto de vida, coisa que justificaria a reclusão e a pouparia, sobretudo, de questionar o medo dos novos estímulos.” O vocábulo árido exige água.

O CÉU É MEU

Lançamento do livro de Patrícia Maês. Nesta quarta-feira, às 19h30, no Godofredo Bar, Rua Paraisópolis, 738, Santa Tereza. O livro custará R$32 nas livrarias e R$25 no lançamento. Participação musical de Rodrigo Borges e Gabriel Guedes.

A escritora e letrista Patrícia Maês lança o livro de contos 'O céu é meu', em Santa Tereza | Divirta-se

A escritora e letrista Patrícia Maês lança o livro de contos 'O céu é meu', em Santa Tereza | Divirta-se

domingo, 17 de fevereiro de 2013

trecho de "pianíssimo"


Eu tinha dezenove anos e me lembro claramente. Na ocasião os ensaios começaram a ganhar aos poucos um caráter diferente, porque grande parte do repertório pedia surdina nos instrumentos, e muito estudo dos instrumentistas. Havia o desafio de tocar pianíssimo sem perder a qualidade, a clareza do som. Costumo dizer que todo o aprendizado na música usei em outras esferas da vida, mas essa questão de aprimorar a capacidade de tocar piano com um som limpíssimo me fez criar muitos paralelos com outras atividades e é matéria de longas discussões com meus amigos músicos até hoje. O pianíssimo perfeito veio impor outras necessidades nos meus dias, como pensar certas coisas da vida acontecendo da maneira certa, justamente dependendo da capacidade de sutileza, o saber pegar e trabalhar o miúdo até deixá-lo grandioso em sua excelência.
 
 

Maya Deren


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

trecho de "silenciosa"


 
Tentou se instalar dentro da banheira seca para tomar o chá, imaginou no fim da tarde os pingos companheiros e cantarolou uma música apreciando o eco que ali fazia. Depois viu que não precisava de música.
Tentou de tudo, ficou nua e olhou seu corpo, imaginou que era bonita, forçou ao máximo até chegar em um prazer mísero que a fizesse lembrar da entrega ao mundo impenetrável sobre o qual ninguém jamais saberia e que nunca precisaria dividir. O mergulho era, portanto, como a liberdade, era como ter segredos a mais, como criar, como se inventar. Sem o prazer das águas ela estava enredada no universo das repetições. Tinha de ficar perambulando, o dia sem quebras de acontecimentos relevantes dividindo o tempo, dando sentido às horas de sobra ao redor.
 
trecho de "silenciosa", de O CÉU É MEU
 
                                                                                     Katia Chausheva

 

do bem


       Seu reduto misterioso poderia ser uma igreja como essas de Minas, porém destacada da cidade, enxertada no meio de um nada além de montanhas cercando um vale de difícil acesso. Seria um forte com paredes erigidas em nome da incidência e movimento do sol nas tardes. Longas e amarelas tardes. Arquitetura em função da luz, relevos colocados estrategicamente como alvos certos dos disparos no céu enviesado como só em tal latitude e longitude. E teria até água correndo no chão, os canais do som que é como uma fala ancestral diluída, um contar maleável abrigando múltiplos entendimentos e a natureza do infiltrado. A água fluiria por entre os corredores e salões com trabalhos incrustados em arcos, abóbodas de flores esculpidas, mosaicos e afrescos pelos muros, e um pátio com uma bica feita de bichos. Talvez como em Alhambra, que tem o pátio com o chafariz dos leões de pedra. Mas o pátio dela era aqui mesmo no meio de Minas, e então brincava com César que o chafariz seria rodeado de onças suçuaranas e lobos guarás. O lugar sempre foi todo para a luz, mas ela insistia em imaginar também o pátio nas sombras, os lobos na noite. O escuro e o líquido, o profundo inconsciente e o emocional revisitados, o passado escrito tendo a chance de soar pelo ar como música, sons contando tudo.
 
trecho de "a horda do bem", de O CÉU É MEU
 
 

retrato


Tão de repente, a imagem o fez ter sensações de desalinho, não exatamente mal estar, mas o sentimento de quem repentinamente se viu perdido por motivo sem precedentes. Era prazer e era diferente. Alimentá-lo ficando parado ali era quase como ser outra pessoa. O vermelho do jorro, o preto da ocupação, da chegada sem aviso, sem pedir aprovação. O escuro se fazia existir sem temores na aquarela, e ele inerte na frente da vitrine da galeria. Não podia dar mais nem um passo.
Ficou pensando. Seria o caso de entrar? Mas o que lhe esperava lá dentro poderia detê-lo ainda mais, perigoso arriscar. De qualquer forma sabia que agora necessitava ter a obra por perto, tanto que temeu não poder pagar por ela. Sobrava a decisão de entrar e obter a informação. Dureza admitir que virara refém da imagem, que precisaria admirar diariamente aquela combinação de cores. Um quadro, quem diria? Ele sequer identificava ainda a coisa como aquarela. Depois reparou que tudo era diluído, a despeito da força, o que o fascinou ainda mais pela aparente incongruência entre essas duas naturezas. Água, e no entanto a marca indelével, como o desejo, e no entanto as consequências das escolhas. Estava capturado. A vida passava a depender de adquirir o objeto, não havia nenhuma hipótese de isso não vir a acontecer.
 
trecho de "retrato", de O CÉU É MEU
 
 

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

para saber


Certo dia olhei interessada demais nos olhos de Catarina. Ela percebeu, parou, me encarou profundamente como se jogando uma isca. Era difícil não ser fisgada. Tive medo de ali mesmo acabar entendendo o que tanto ninguém poderia saber. O mistério ficou próximo demais, aquela dor rejeitada, e eu quis sumir naquela hora. Tinha fascinação pela moça, mas muito medo das perdas. Ainda era cedo para ver o escombro agarrando pelos flancos uma figura que para mim veio se apresentar como o oposto disso. Logo desviei o olhar e ela sentiu que nada poderia ser dito àquela criança. Então eu era como o nada, porque nem concebia conhecer o que até então havia permanecido indecifrável. Mas se havia alguém para quem ela diria sobre como via caber ela própria dentro do seu sentir, esse alguém era eu e isso ninguém precisava me dizer.

 
trecho de "para saber", de O CÉU É MEU
 
imagem - Devora Jacoby

o silêncio dela


Viver o silêncio em um mundo observado apenas pela janela ficou sendo a melhor opção. E ela encarou como trabalho, fez isso para sentir-se dona de um projeto de vida, coisa que justificaria a reclusão e a pouparia, sobretudo, de questionar o medo dos novos estímulos. Pensou nos artistas que escolhiam o isolamento como condição primeira para chegar em realização e dignidade. E ela era digna com toda a quietude, não ajudava em nada, mas não fazia mal a ninguém, não incomodava e nem divergia. Como isso era bem vindo. Estar no mundo da forma mais delicada, não pertencer a ele ostensivamente, querendo coisas, engendrando mudanças. Nunca mais, nada disso. Ela só queria dar paz e receber indiferença, aquela que nunca a cobraria de ter um pouco mais ou de parecer adequada.

 
 
trecho de "silenciosa", de O CÉU É MEU
 
house by Francesca Woodman - Providence, Rhode Island, 1976
 
 

Dorothy

 
Qualquer mulher que aspire a comportar-se como um homem,
é certo que carece de ambição.
 
Dorothy Parker

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Elizabeth

  
 
The greatest gift is the passion for reading. It is cheap, it consoles, it distracts, it excites, it gives you knowledge of the world and experience of a wide kind. It is a moral illumination.
 
 ELIZABETH HARDWICK
 
 

Doris


"Acho que muitos escritores invejam pintores porque gostamos de acreditar que é mais simples pintar uma imagem do que escrever um livro. Não é, claro! Mas é uma atividade muito atraente, tátil."

Doris Lessing, em entrevista a Hans Ulrich Obrist.

Imagem de SUNOL ALVAR

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

respiração


Há a calma e ela queria ensinar respiração. Ministrar cursos de prazer com o ar seria de nobreza absoluta. Um anúncio no jornal? Seus amigos não se interessavam pela ciência longamente sistematizada, compêndios escritos ao longo dos anos, enquanto sentia crescer a mudança, o apurar da técnica, ideias de descobertas a mais. E isso ia se desenvolvendo sem pretensão nos intervalos de qualquer atividade, anotações impulsivas nas agendas sempre à mão, aquilo que agregava mais valor ao dia e a fazia sorrir. Anotava tudo o que descobria sobre essa arte, às vezes pequenas mas significativas observações sobre como o corpo respondia a tudo. Agora ela aperta suas coxas deixando-as marcadas, inspira junto com o movimento dos dedos, em garra. Mas só a pele na pele não adianta. O movimento do ar entrando e saindo é que dá a ideia da temperatura do contato. Sim, como não acreditavam nela? Quanto prazer desperdiçado.
 
 
 
                  trecho de "conto com sentido" de O CÉU É MEU

domingo, 27 de janeiro de 2013

Festa de lançamento do livro "O CÉU É MEU", de PATRICIA MAÊS.
Sarau com leitura de textos, além de muita música.
Participação amiga dos escritores Luis Malta Louceiro e Isa Baccara.
Música de Rodrigo Borges e Gabriel Guedes.
20 de Março de 2013 - 19:30
Godofredo Bar - Rua Paraisópolis, Belo Horizonte

A estética da contenção

por Isa Baccara, escritora

Os contos de Patricia Maês não podem ser lidos com olhos forasteiros. Ou seja, olhos contaminados pela realidade prostrada; por noções gastas acerca de poder, sensualidade, anima, animus, espaço, tempo, alteridade, subjetividade, objetividade. Livre-se das expectativas pautadas na literatura vigente, na escrita do estarrecimento; não é tratamento de choque, embora conte com rupturas inesperadas, com o elemento surpresa. O mundo a ser apreendido é o mundo dos sentidos, dos sentimentos, dos sensíveis, dos delicados. Aqui, as personagens não são apenas criaturas de papel, entidades fictícias, mas, ícones do mundo interno da autora e de leitores. Deste modo, personagem, autora e leitor se tornam ponte para uma travessia possível.
É um livro sem criptografias; sem fardos; sem cargas; nele belezas emergem das ruínas; e a vida soa leve porque os contos são calmos. Eles cedem às personagens e ao leitor a chance de recriar a vida e desejos no campo da imaginação, da arte. Na esfera onde chumbo vira pluma nada é proibido, pois, é terreno onde permissividades se manifestam livremente. A autora dispensa o texto complexo, encharcado e faz a sábia opção por uma linguagem clara que se contraponha ao tema – que já é, por si só, absolutamente vasto e complexo. O resultado é um texto sem bijuterias, sem o cheiro forte dos perfumes, sem rompantes verbais e, paradoxalmente, sem previsibilidades. O discurso direto, nada de exageros metafóricos ou entulhos verbais, abre fendas que servem como pontes levando ao silêncio do próprio leitor.
Ser sublime é um ato de coragem. Sempre foi. Hoje um tanto mais. “Vou escrever esta história pra provar que eu sou sublime”, como reafirma o poeta em “Tabacaria”. Eu disse a mim mesma, já no primeiro conto: "Vou ler e me ler neste livro pra atestar se sou sublime". Sim, é o que é: um livro sublime, no sentido mais profundo do termo. Porque tem a ousadia de trazer de mundos submersos condições humanas inutilizadas, descartadas; descarte que é causa da degradação que nos assola, e aqui estamos diante de um basta. Basta ao excesso de exposição que nos levou mais do que nos deu. Basta a princípios de liberdade que se perderam nos próprios fins e ao extravasamento que se deslocou da ideia matriz desembocando em valores completamente deturpados.
É um livro sensual; uma prosa que em sua raiz estilística exacerba o brado retumbante da poética de Adélia Prado: "Erótica é a alma". Porque mostra-nos, por meio da sugestão, que sensualidade não tem qualquer relação com o explícito, mas, com o sugerido. A sugestão é mais instigante, incita os sentidos e o desejo de descoberta.
O livro de Patricia é elegante, charmoso, delicado, rico em significados profundos, cheio de silêncios bem articulados. É uma escrita cuidadosa. Cuidadosa com o leitor, cuidadosa com as personagens, cuidadosa com uma escala de valores truncada no curso dos eventos. Falta ao mundo mais charme, mais gentileza. Patricia Maês sabe disso e nos dá um livro gentil, oferece-nos um jantar generoso, sem gula. É uma anfitriã preparada, zelosa. Acostumada a receber bem as pessoas.
Este livro, caro leitor, é uma casa muito bem decorada e carregada de zelos. Reduza o ritmo, dê a si mesmo um pouco de privacidade. Leia com a memória dos esquecidos, leia como quem sofreu uma amnésia; recrie seu tempo, espaço, seu ser no tempo e no espaço. Pressinta algo desgovernado no mundo, pressinta-se desgovernado. Pare o seu mundo e entre nele sozinho. Porque o seu mundo é só seu. Indivisível.