No largo do alpendre, estanque em silêncio,
e escute dos muros uma idéia desta casa.
As paredes ressentem-se e não envolvem tumultos.
Nenhuma precipitação de barulhos ou pressa que ultrapassem
o pórtico de minha madrugada
sem deixar na soleira o que no interior não há como caber.
De fora ainda sou vaga, disperso atos, dispenso comentários,
falo abertamente no ar, e tenho bicas que deitam água,
protelando em burburinho de gotas e jorros
a displicência de ser aos quatro ventos o que se pode dar.
Dos degraus para dentro,
depois da chapeleira onde se pendura o mais frugal,
a gravidade de azulejos velhos,
caibros trincados com musgos vencendo as fendas,
eu ofereço a quem com respeito se aventura na galeria
de quadros do que já foi e do que ainda é.
No salão aquecido da lareira acesa, castiçais comemoram
e fazem brilhos nos fios de tapetes puídos,
que convidam intactos para os sonos que são dos justos.
Não há objeto obsoleto.
Cristaleiras repletas de louças que se usam,
estalam suas madeiras
com as mornas golfadas da respiração do beiral,
da floreira sem fuligem, do balanço descansado
apoiando e embalando lento um começo de vida
do que no entanto jamais envelhece.
Depois das escadas o vitral é um aquário.
Movimento e repouso sobre cômodas fartas,
que exalam sem peso a delicadeza
e o reflexo em estouro acobreado das chaves,
iluminando em pulsares vermelhos e amarelos,
abrandando o alicerce bruto, as vigas espessas,
e a tranca esquecida, esta sim sem utilidade.
No refeitório de gamelas esculpidas,
colheres e conchas em côncavo maternal,
queimam ao forno alecrins e alfazemas
soprando ares de perfumes quentes até o quintal.
A pia de lavar as mãos e o rosto mantém corrente
o fino corte de água fresca,
fluindo branda em insistência e constância,
molhando a mais seca visão.
Não há sede nas pedras, não há fim nos corredores.
Os vestíbulos umedecidos de ventos orvalhados
que todas as noites corromperam vidraças pálidas,
desfazendo barreiras mais duras,
e preservando íntegros os seus tecidos calmantes,
que garantem proteção.
Há lençóis e cortinas no dossel.
Há mantas e almofadas pelo chão.
O assoalho é de brilho e de opaco,
o teto é alto e claro, e as velas são coloridas.
Nada está fora de seu lugar.
Na outra sala espelhos escorrem de vapor.
A banheira é o tanque e refletor onde bóia espuma leve
e convida a lavar o dissabor.
Pétalas flutuam mudas, a superfície acontece plena.
No fundo só as idéias turvas,
a vista que se retirou de lembrar,
tempo que não valeu a pena.
Corredores à frente, e outros e outros.
Outras salas mais quentes, outras mais frias,
quartos vazados, sacadas de heras como franjas penduradas,
canteiros que se arrebentam de raízes que não conhecem fim.
E como limite uma inquietude latente emerge.
E o vapor condensa e escorre mais grosso.
Revela-se no espelho, uma mudança que não se pode negar.
De tão vista a casa agora é um pedido, e já exige algum som,
como se o piano no hall latejasse de tensão e expectativa.
A lenha na lareira incandesceu e já é só brasa.
Fagulhas pulam na seda da passadeira estendida e próxima.
Fogo? Ainda não.
Algo não se aguenta de tão visitado e quer expandir,
subverter a acolhida, estourar os canos,
romper as janelas e deixar que conteúdos escapem sem retorno.
O pátio chama, a árvore chama,
para ver o céu e esquecer as ruínas.
Atravesso a última porta.
E deixo-te a casa inteira, para sempre.
E deixo-me inteira.
Vou pela alameda afora vestida em penas e tintas,
para não mais mãos solitárias.
Para nunca mais portão nem cerca.
Nunca mais nenhum telhado.
2001