modular é necessário







quinta-feira, 24 de junho de 2010

Glenn Gould plays Bach

Fala de Larissa, a personagem compositora da peça “Opus 48”.
  
“... Eu estava quieta até ali, não conhecia outras realidades além do cotidiano de alguém que é muito jovem... e eu só seguia as regras, cumpria os compromissos, distraida o tempo todo até da minha própria natureza.
Mas a música dele tocou. E as regras na minha vida acabaram.
Dali em diante meus dias ganharam objetivo: aprender a viver naquele espírito.
Aquela música era um verdadeiro compêndio de comportamento feliz, pensamento feliz, uma esperança desenfreada e inabalável de que o futuro não tinha nada de amedrontador.  
Era um som de total liberdade... que me presenteava com uma espécie de toque mágico: tudo o que eu tocasse viraria outra coisa.
E eu descobria deslumbrada meu uso do ar novo, essa maneira de inspirar o vento da música e depois exalar o vento da transformação.
Sim, virei a portadora de grande revolução... imensa responsabilidade tanto despojamento.
O menor suspiro, minhas risadas, minhas explanações, tinham a missão maravilhosa de mudar. 
Mudar. Que força.
E tudo isso é verdadeiro, aconteceu de fato: eu fui mesmo “reanimada” naquele encontro com os sons dele.
Nasci assim."
Patricia Maês
Na peça, isso é para um compositor.
Mas hoje eu até dedicaria as mesmas palavras ao Glenn Gould, no post acima.

André Jolivet: Concerto per fagotto (1954) Terzo e Quarto Movimento

quarta-feira, 23 de junho de 2010

pessoas como coisas



O que se acredita ser a grande liberdade individual não passa de uma forma bastante iludida e primária de exercer o poder de consumo, este já implantado na vida de todos nós com uma pré-programação de como e quando deve ser exercido. E essa programação é vinda de instâncias que também nos iludimos quando julgamos saber completamente quais são. Zigmunt Bauman, em seu livro "Vida para Consumo - a transformação das pessoas em mercadoria", fala das sensações enganosas de poder que o sistema de relações mediadas pelo computador nos oferece. O que o mundo da comunicação virtual dá em sensação de poder de escolha, escolha sobre com quem falar, quem chamar para dentro do círculo mais privado, o que escolher em produtos para se adquirir, na verdade é um exercício não da escolha sobre o que se vai possuir, e sim a facilidade com que é possível desistir delas depois, segundo a sua observação. Quando parece que tudo está ao seu alcance só com o toque sobre um ícone em uma tela, a grande obsessão pela troca já está de tal forma embutida em seus mais arraigados preceitos de conduta, que tudo o que por um segundo deixa de preencher os requisitos básicos daquilo que forma uma identidade que liga apreciavelmente um sujeito a determinados grupos, já está fadado a desaparecer ao toque simples de uma tecla de substituição. E é também assim nas relações de afetividade entre pessoas, como conseqüência de um aprendizado que sofremos pelo desapego aos objetos que adquirimos, às estórias passadas às quais renegamos, ou seja, pela maneira como nos dirigimos a tudo sempre como sujeitos consumidores, sem perceber.
Vivemos uma vida em que tudo se torna obsoleto muito rapidamente, e sinto que o imediatismo e a urgência de se viver "aproveitando" o momento presente é uma paranóia que apenas faz temer o já vivido e também qualquer projeção sobre o que está por vir, como se isso representasse não um caminho de autoconhecimento e sim uma fuga da realidade. Nesse contexto da obsessão exclusivista pelo instante presente, o reconhecimento da importância de uma experiência vivida é tido quase como um culto mórbido sobre matérias mortas, e qualquer anseio sobre o futuro é como almejar o improvável em detrimento de sentir o chão sólido ou ter referências fixas do mundo.
E o desprezo às coisas e às histórias pregressas de vida vira desprezo pelo próximo. Não é à toa que tanta gente agora esteja se deparando com uma crescente desabilidade em estabelecer vínculos reais, aqueles onde as pessoas se confrontam em plenitude, sem a tecla ágil que promove a desconexão rápida em caso de qualquer desagrado.
Patricia Maês

política no real, política no virtual



Em relação ao mundo virtual, há pouco tempo eu não acreditava no peso político que certa movimentação de idéias via internet poderia promover. A aparência de grande revolução possibilitada pela circulação de pontos de vista em número indiscriminado me parecia de fato ilusão, uma vez que a rede que dissemina cada alerta de vida e formas pensantes em atividade, não prometia desencadear transformações significativas na política que se faz fora do mundo virtual e que, nos atingindo economicamente antes, ideologicamente também nos conduz.
Novamente citando Zigmunt Bauman, penso no quanto seu livro, não tão antigo, contém idéias que já são absolutamente contestáveis. Ele diz que enquanto essas atividades (as atividades dos sites e blogs de discussão econômica ou de políticas culturais, por exemplo) aspiram que suas palavras tenham validade como fazer político, ignoram o quanto da energia empregada nelas flui fácil por um duto que desemboca diretamente a uma lago de águas estagnadas:

" No que se refere à 'política real', quando a discordância viaja em direção a armazéns eletrônicos, ela é esterilizada, neutralizada e tornada irrelevante. Aqueles que remexem a água dos lagos de armazenamento podem se congratular por sua inspiração e vivacidade, comprovando sua boa forma, mas os que estão nos corredores do verdadeiro poder dificilmente serão forçados a prestar atenção. Serão apenas gratos à tecnologia de comunicação de última geração pelo trabalho que realiza ao desviar problemas potenciais e desmontar as barricadas erigidas em seu caminho antes que os construtores tenham tempo de levantá-las, e muito menos reunido as pessoas necessárias pra defendê-las."

Hoje pensei que com a política do mundo “real” chegando mais rapidamente ao conhecimento público, que com o fato da circulação de informação não estar mais nas mãos de poucos, e consequentemente, das reflexões sobre atualidades não estarem vinculadas a interesses pouco variados, talvez o inverso do ele imaginava vire realidade logo mais, ou seja, que as grandes “armações” na política do mundo real estejam passíveis de escancaramento também em tempo real para uma parcela considerável de pessoas e assim possam estar sujeitas à desarticulação, pela simples manifestação imediata das antenas mais capazes de compreender e manejar a reação de uma parte considerável da opinião pública.
Eu preciso reler Bauman, pensar tudo de novo. Acho que é preciso considerar que o papel do jornalismo mudou, que a internet criou a realidade bastante interessante em que, graças à rede, o universo de circulação de notícias e críticas já pode partir da síntese de um número muito maior de pontos de vista. Se há muita banalidade jogada no mundo virtual, há também seriedade e mananciais relevantes de novas perspectivas a respeito do que quer que seja, de qualquer assunto, e é disso que o jornalismo se beneficia hoje, aproximando inclusive a possibilidade de circulação da crítica, do nascimento dos fatos.
Ontem vi o vídeo de uma palestra que Luis Nassif deu na UFMG, no dia 6 de junho deste ano, onde ele fala de um novo papel do jornalista em tempos de internet. Eu gostaria de indicar esse vídeo (que é facilmente encontrado em “Luis Nassif Online” e no youtube - http://www.youtube.com/watch?v=vhCIopIklJg). E ontem também recebi um e-mail com a indicação de um site que mapeia a quantidade de blogs em ação no mundo. A quantidade estimada é de quase um bilhão de blogs funcionando neste exato momento. Mesmo que seja necessário filtrar uma imensa maioria de endereços em que as publicações são frágeis em conteúdo, procuro acreditar que algum dia isso tudo possa ter sim, algum significado positivo.
Patricia Maês

terça-feira, 22 de junho de 2010

devorar é autêntico

Nada é original. Roube de qualquer lugar que ressoe com inspiração ou que seja combustível para sua imaginação. Devore filmes antigos, filmes novos, música, livros, pinturas, fotografias, poemas, sonhos, conversas aleatórias, arquitetura, pontes, sinalização de trânsito, árvores, nuvens, formas de água, luz e sombra. Selecione para roubar somente aquilo que fale diretamente para sua alma. Se você fizer isso, seu trabalho (e roubo) serão autênticos.
Autenticidade não tem valor em si; originalidade não existe. E não se preocupe com esconder seu roubo – celebre-o se tiver vontade! De qualquer maneira, sempre lembre que Jean-Luc Godard disse: “O que interessa não é de onde você tira as coisas – mas para onde você as leva.”
– Jim Jarmusch

Uma vez uma cantora me disse que descobriu melhor sua voz, dançando. 

E isso é o que mais sinto falta nos artistas em geral: experimentar as linguagens e ver que tudo está ligado. 

Acho estranho um músico dizer que não gosta de dançar, um ator nunca ter parado para sentir o que é um Mozart, um bailarino que nunca tentou desenhar. 

Tudo está ligado na arte... assim como tudo o que está na alma pede para ir para o corpo.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

interno, espontâneo, natural



      Em primeiro lugar vem o medo, sentimento mais constante, pano de fundo da existência de todos. Parece radicalmente dura essa afirmação, mas é o resumo das respostas que obtive de meus alunos à pergunta sobre qual a sensação mais presente em suas vidas. 
Essa síntese revela que tudo parece pequeno, quando comparado ao desentendimento sobre onde caberiam suas vontades mais básicas nesse mundo perigoso e repleto de violência. Todos demonstraram sentir medo, medo de não haver consonância entre suas individualidades e as demandas do entorno competitivo, que precisa de pessoas encaixadas em padrões preestabelecidos tanto em matéria de potencialidades como de interesses.

     Quando falo em alunos que me procuram com motivação mais terapêutica do que propriamente uma necessidade de desenvolvimento de algum potencial artístico, falo em um número considerável de pessoas, e de faixas etárias tão diversas, que não posso imaginar que isso seja um fato isolado e comum a uma determinada idade ou classe social. Vi muitas pessoas assustadas procurando conforto na melhora da autoestima, contando para isso com uma oportunidade de testar sua concentração, por exemplo. A melhora na capacidade de concentração é sempre citada encabeçando a lista, quando os iniciantes enumeram as razões que os levaram a querer tocar um instrumento musical. Para a maioria, essa melhora na autoapreciação poderia ser proporcionada pelo aprendizado de uma atividade considerada difícil e ao mesmo tempo bonita ou sensível. Para aqueles que enfrentam estados depressivos, o manter da sensibilidade é uma grande preocupação. Em uma experiência de tristeza prolongada, a pessoa começa a temer o endurecimento da personalidade, como uma ameaça à possibilidade de voltar um dia a reagir espontaneamente e com leveza aos estímulos simples da própria convivência com outras pessoas, ou a natural satisfação que se tira das situações mais cotidianas.

     Sobre o medo e a dor, ela parece estar muito ligada a deficiências no autoconhecimento e à dificuldade de enxergar relação entre o pouco que se sabe de si mesmo, com o que é possível compreender das expectativas do mundo exterior para com as atitudes e escolhas de cada um. A dor ou a promessa de sua chegada devastadora, resulta do descompasso entre cada indivíduo e sua autoimagem, ou o desvio sutil por onde ele é conduzido, às cegas em relação aos seus anseios mais genuínos, que acabam camuflados pelos interesses que nascem fora, fabricados tão longe do âmago de cada um.

      O mundo é uma solicitação infinita para que sejamos dinâmicos e flexíveis, e para que vivamos alternando repentinamente nossas posturas e crenças, sem que fique claro quem é que se beneficia de tamanha inconstância. O novo tipo de atitude, requisitado a todo instante e que exemplifica a consonância com o tempo, não nos permite focar na sensação de desentendimento e desajuste entre o que somos e o que fomos. A velocidade dos acontecimentos exige uma capacidade de adaptação à altura. Os interesses os quais nos sobram abraçar surgem normalmente equipados de acessórios caprichosos, que pregam com apelos variados, sem monotonia, as vantagens inerentes a determinados estilos de vida e a determinadas posições políticas. A idéia é de que o sonho e a ousadia se rendam de forma discreta, sem gerar reação e resistência. E é buscando atender a um ritmo externo que na maioria das vezes não corresponde ao que se tem de mais interno, espontâneo e natural, que você sente que perde o melhor de si mesmo, sem contudo conseguir nomear a sensação, que é a de perder, simplesmente perder. 
Patricia Maês

aos vinte anos - histórias de alunos




Eis que surge para mim uma vez, uma moça de vinte anos querendo uma professora de música. A moça se apresentou da mesma maneira que todos costumam se apresentar, querendo antes de tudo conversar, falar de suas inúmeras dúvidas a respeito da compra de seu instrumento. Situação rotineira, o professor dar indicações sobre como escolher um bom violino a alguém que ainda não conhece nada a respeito.

Mas aos poucos a conversa foi tomando um rumo que deixava claro que para aquela pessoa, o fato de estar ali falando comigo era quase um ato perigoso, uma coisa que poderia a qualquer momento se revelar como um compromisso do qual nenhuma de nós poderia mais desistir. Nunca mais. Tudo parecia ser tão definitivo para ela, claramente amedrontada, que eu acabei também apreensiva e sugeri que o melhor seria ter cautela antes de empreender gastos.

Em seguida a moça quis saber se tocar violino faz alguém mais alegre ou mais triste, mais "para fora" ou mais "para dentro", segundo suas palavras. Expliquei que por mais que o aprendizado de qualquer coisa nova transforme normalmente as pessoas, e que apesar da música ser extremamente eficiente no que diz respeito a revelar aspectos emotivos e outras sensibilidades, eficiente em estimular novos processos cognitivos, toda mudança seria sempre controlável, e que, se é verdade que lidar com a percepção voltada para os sons de fato ativa áreas antes adormecidas no cérebro, não ocorreria nenhuma mudança drástica na sua personalidade só por causa do começo na prática de um instrumento. Avisei que no máximo, o que ocorreria em curto prazo seria a ampliação da sua capacidade de concentração, e da disciplina para conciliar o estudo e outras atividades, se ela assim o desejasse. Mas a moça insistia que havia mais, até que entendi que a questão maior entre todas as suas dúvidas era a respeito do vínculo entre nós duas. Enquanto experimentava maneiras de segurar o instrumento, e que eu ia orientando, vi que o fato ter sido tocada na mão já foi para ela uma experiência extremamente inusitada. Tanto que indagou se seria possível que por causa das aulas de música alguém se tornasse mais natural em relação ao contato físico, já que isso ocorre com freqüência entre professor e aluno.

Depois de ir embora convencida por mim, obviamente, de que não era hora de começar nada, ela telefona dias depois, querendo dicas sobre um violino elétrico. Expliquei que não era possível começar a estudar no violino elétrico, falei das questões de dinâmica que só se pode trabalhar no instrumento acústico, etc... e ela pareceu compreender. Uma noite, e bem tarde da noite, atendo uma ligação dessa mesma moça dizendo-se muito preocupada e precisando demais avisar-me que caso começasse a ter aulas, faria absoluta questão de aprender apenas músicas alegres, coisas que "me joguem pra cima", como ela mesma colocou, e completando o pensamento com a advertência de que "nada que remete à melancolia costuma fazer bem ao meu espírito".

Bom, a esta altura eu já havia percebido o tamanho da encrenca que seria tentar ensinar qualquer coisa a uma pessoa tão complicada, e com a maior das paciências tive de lhe dizer que então infelizmente não seria possível, porque eu apenas trabalho com músicas melancólicas e exercícios sombrios. Tive de dizer a ela que a melancolia faz parte da vida, e que ela jamais poderia entender a música se não conseguisse entrar em contato com esse lado da sua personalidade, que certamente existia e não era aceito. A moça tentou argumentar, deu uma série de exemplos de músicas "alegres" e que a jogavam "para cima", mas mesmo assim eu disse que não seria possível e encerrei nosso contato ali.

Nem há muito o que analisar dessas três aparições da garota. Os fatos falam por si e é explícito o quanto as pessoas estão acostumadas com contatos superficiais, alimentando depois idealizações exageradas em qualquer oportunidade de quebra dessa regra em suas convivências em que o contato próximo, o trato de assuntos que remetem a sensações, percepções de coisas subjetivas, é tão escasso. Outra coisa é a recusa a tudo que não tenha retorno imediato. Na vez em que falamos sobre a impossibilidade de se começar a estudar violino com um instrumento elétrico ela se mostrou bastante decepcionada, e confessou que já estava planejando fazer gravações. Outra coisa a se observar é que ingressar em alguma atividade que já insira a pessoa num novo grupo e que dê sensação de pertencer a alguma nova categoria entre os seres humanos, como era a visão dessa garota sobre o mundo da música, já causa medo, como se o estilo fugidio e com alertas de segurança que permite que se dê a qualquer momento um passo atrás fosse ameaçado, no caso de uma atividade onde ao se ingressar já é necessário desembolsar uma quantia considerável de dinheiro. Ou seja, tudo conspira para que as melhores escolhas do momento sejam aquelas sem grandes compromissos, sem grandes alterações no estilo de vida, ainda que às vezes as pessoas desejem ter suas personalidades "incrementadas" e alimentem a respeito de qualquer novidade em suas vidas, que essas novidades possam quase proporcionar uma troca de identidade, fetiche tão mal resolvido na cabeça da maioria.

O comportamento ansioso que essa moça apresentou, um comportamento amedrontado ao mesmo tempo que visivelmente desejoso de algo que significasse uma transformação sem precedentes na sua vida, chegou a ser assustador e também digno de um grande pesar, pelo tanto de incoerência que escancarava. Uma pessoa tão sem referência, que aos vinte anos não tem a menor idéia do que combina ou não, com o seu jeito "para dentro" ou "para fora" de ser.
Patricia Maês