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terça-feira, 24 de outubro de 2017

A tortura nesses tempos

A tortura nesses tempos - Patricia Maês
   Quero falar de uma história que chegou ao meu conhecimento recentemente, piorando minha inquietação com a tremenda hipocrisia a que estamos submetidos nesse país que já era. A história começa com uma moça, professora competente do ensino médio, que faz de tudo para conseguir apresentar a nossa bela língua e a literatura para adolescentes, e as insuportáveis contendas diárias que ela tem de enfrentar por causa disso. Bem, a história começa com essa professora e vai acabar com uma abertura panorâmica para o cenário geral de desconstrução da civilidade, do afeto e da subjetividade, realidade desses dias.
   O esforço da professora para não sucumbir ao desânimo não é só na sala de aula, frente à ignorância acompanhada de soberba dos seus alunos que confundem informação com sapiência, mas também frente à morbidez de um sistema que engendra a política mais perversa e o controle ideológico mais dissimulado, crescentes no âmago da direção de grande parte das escolas. 
   Olhando primeiro os alunos, um detalhe curioso é que eles repetem exaustivamente letras de músicas que se propõem a formar um discurso linear e de crítica, mas que jogam conclusões no vazio, são pretensos tratados sobre opressão, mas que claramente se contradizem, mesmo se levarmos em conta a possibilidade de uma licença poética mal sucedida aqui ou ali. Ou seja, eles nem suspeitam do que estão dizendo. Gostam de músicas que em sua superfície até tentam parecer um grito de libertação diante de certos preconceitos, mas que no fundo, em sua verborragia desenfreada por onde são vomitados conceitos mal ajambrados e contraditórios, cometem o mesmo erro que apontam nos outros, agredindo o próximo também em seus direitos, usando de violência e coação para impor suas verdades, essa ideia de verdade criada no campo de visão cada vez mais estreito de quem despreza a experiência advinda de estudos, leituras, viagens e desapego a idolatrias juvenis.          Mas os filhos do neoliberalismo, emocionalmente comprometidos pela realidade da compra e venda de princípios e sentimentos, não acreditam que por falta de conhecimento não sabem processar a quantidade de informação recebida diariamente por todos os lados, e sobretudo, não aceitam que alguém como o professor, fragilizado pelo descrédito que recebe da sociedade e pelo menor poder aquisitivo frente a tantas outras profissões de menor responsabilidade, tenha ascendência sobre eles ou mesmo autoridade naquele ou em algum outro espaço, e sobre qualquer assunto.
   A professora de que falo sofre discriminação por estar acima do peso, por não ser rica, por ter optado por um caminho na vida onde os principais ganhos são “apenas” o conhecimento, a beleza, e a generosidade de ensinar a pensar. Sofre discriminação por ter valores e interesses diferentes e talvez um pouco mais sublimes que os dos aprendizes da intolerância à sua frente, e também por ser mulher, por não ser mãe, e no fim, por ser casada com uma outra mulher. Aliás, os alunos se referem à sua companheira dizendo seu nome no masculino e no aumentativo, tentando com isso provocar sentimento de inadequação e desconforto. Só provocam tristeza. E fazem isso sem o menor constrangimento, desvalorizando a vida pessoal dos outros como se estivessem em um patamar acima da ética e ainda em condições de moralizar de acordo com suas convicções. As asperezas e as palavras de humilhação são frequentes. Sim, os jovens podem ser homofóbicos, e isso não é visto pela direção da escola como algo preocupante a ser conversado e questionado, afinal a própria diretora diz com peito estufado pelos corredores da instituição, que apoia o candidato da fúria cega e força bruta, e que ele sim, sabe o que é democracia.

   Agora vamos a um caso. A professora tenta falar, apresentar um filme trazido especialmente para enriquecer a aula do dia, uma atividade típica na sua busca por aguçar a capacidade cognitiva do aluno, proporcionando contato com a arte e gerando uma roda de compartilhamento da experiência depois. Ela está dando instrumental para que ele possa desenvolver seu senso crítico frente às informações na vida, tendo como base o seu domínio da linguagem. Ela fala do poder de discernimento das coisas que o domínio da linguagem pode dar, como facilitadora de agilidade do pensamento, como um salto à capacidade de abstração e enfim à liberdade para o uso pleno da mente. Tudo isso? Sim, oportunidades incontáveis podem surgir de metodologias de ensino que se abrem para formas de expressão diversas e para a natural curiosidade humana. A professora sabe disso, mas quem não sabe é a menina sentada ali na primeira fileira, e que não concorda que a atividade se realize. Ela simplesmente resolveu testar naquele dia qual é o limite dos seus privilégios. Resolveu não admitir que venham lhe ensinar mais nada. A professora tenta colocar o filme, e a menina então começa seu já bem conhecido deboche diante de tudo o que não sabe, caindo no riso, e levando a reboque outras colegas. Pouco tempo depois toda a classe vê as meninas caindo no chão, literalmente, como se perdendo as forças com aquela risada forte e escancaradamente depreciativa. A professora pede várias vezes para que elas se levantem, quando percebe nitidamente que o desacato é mais ousado e de uma natureza mais profunda do que uma simples bobeira infantil. As jovens acreditam que não devem respeito àquela pessoa que comanda a aula, e esse desrespeito é fomentado pela homofobia de pais e direção, por um consenso latente circulando naquele meio, de que a professora realmente não poderia jamais reagir à violação de qualquer lei, simplesmente porque está só, totalmente solitária no seu empenho por despertar sensibilidade, educação, autovalorização e dignidade. O que pode uma pessoa assim, sem nenhum apoio de nenhum lado? 
   Mas a professora fala às alunas o que pensa da cena deprimente de gente jogada no chão, usando de empáfia, zombando da dignidade, zombando da mais básica civilidade naquele contexto da aula, da mais básica educação e respeito, e diz ter nojo de quem faz isso. Em seguida se retira da classe e vai chorando à diretoria pedindo apoio para ter condições de trabalho. Só que ela não atentou para o fato de que mesmo com o tamanho da provocação vinda dos alunos, tanto tripúdio, era justamente aquela palavrinha pronunciada por ela, o nojo, que detonaria um estardalhaço monumental a ecoar sem limites pelo prédio num espaço de tempo também interminável. Aquela palavrinha, dita com propriedade no meio de uma cena de discriminação aberta, foi o suficiente para que uma das alunas, afrodescendente, se levantasse da zombaria e fosse também à direção prestar uma queixa. A menina se colocou como a vítima, e disse que era racismo. 
   A diretora da escola, a que estufa o peito para apoiar o candidato da fúria cega, da tortura e morte, da intolerância religiosa, do desprezo pelas questões de gênero, da demonização dos artistas, não quis dar atenção às discriminações sofridas pela professora e preferiu desautorizá-la frente a todos aqueles que por tanto tempo a desrespeitaram e desrespeitaram sua posição de mestra daquela disciplina. 
  Terrível dizer que a professora terminou chorando novamente, um dia depois. Foi para ela mais uma violência ter de pedir desculpas a uma mãe arrogante que, incentivada pela diretora da escola, foi colocar o dedo bem no seu nariz, acusando-a de criminosa. A diretora não podia esconder o quanto estava exultante por achar uma representante finalmente, alguém que dissesse o que ela tanto gostaria de dizer àquela degenerada, se pudesse. 
   E assim tudo voltou ao normal e as aulas seguiram, com “as crianças” devidamente defendidas em sua dignidade, e defendida também a gana por opressão e subserviência, que faz parte da alma desta nação brasileira. Aqui é o lugar da hipocrisia e da adoração ao ridículo, da exaltação da ignorância como uma espécie de virtude ou como uma espécie de inocência que será recompensada um dia por algum espírito paternalista de um estado totalitário e protetor, detentor de toda a responsabilidade por determinar o que é certo e errado, deixando o rebanho correr solto e com um sentimento de segurança nunca antes experimentado. Aqui é o país que já acabou. Aqui já é ditadura. Aqui já temos inquisição, como também já temos quem venda indulgências para todos os gostos e possibilidades de pagamento. A diferença desses tempos é que a tortura que se pratica contra quem está pensando e colocando sua capacidade intelectual à disposição de um bem maior, à disposição de expandir a autonomia do pensamento e do sentimento para todos, é furtiva, acobertada, é uma tortura abjeta e avivada por essa sede mórbida de escravidão. O que não deveria acontecer já está acontecendo, só que as modalidades de açoites, choques, mutilações em vigor não precisam de nossos corpos presentes, elas vêm sendo construídas ardilosamente no suporte e estrutura de veiculação da cultura que criou os tais versos que os meninos amam, as ideias fluindo em duas mãos opostas graças aos erros de concordância da fala tosca e destituída de função poética, incapaz de conceber a mais simples das metáforas, e que não bastando fazer apologia à violência, oferece violência na própria natureza rudimentar e estúpida do palavreado. São tantas dessas palavras agrupadas grosseiramente ecoando por aí, para o deleite do povo que se compraz com sofrimento e a própria desgraça, aplaudindo euforicamente enquanto se torna mais decadente e feio. A xucrice segue, desabonando quem tenta clarear o sentido da autoestima para as pessoas desse lugar. Essa modalidade de tortura já era prevista há tempos, um fluxo de discrepâncias e veleidades baratas inoculadas por entre nós como o veneno numa potente guerra química feita de solventes de estrutura psíquica, ética e estética. Esses açoites, choques, empalamentos de agora, desarticulam o chamado à vida e à viabilidade dos afetos. Vão diretamente atacar as aspirações nobres daqueles que ainda têm dentro o que se pode chamar de espírito. 
   Os professores seguem ensinando, ainda existem e não pararam. Mas sabemos que é questão de tempo, bem pouco tempo... e no caso dessa professora em particular, sendo minha amiga, eu espero que seja pouco tempo mesmo. Bons espíritos precisam de cuidados.

22 de outubro de 2017