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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Comentários sobre "Tempos de Olívia"

 
Jardel Dias Cavalcanti
(Doutor em História da Arte pela Unicamp,
Prof. de Crítica e história da arte na UEL,
Colunista do site  www.digestivocultural.coom)
 
Anseio pela escuridão para que algo se contraponha à luz que quero ver brotando de mim novamente.
(Patricia Maês- Tempos de Olívia)
 
Segundo Oscar Wilde, “o crítico é aquele capaz de traduzir para uma outra maneira, ou para um outro material, sua impressão das coisas maravilhosas”. Não é diferente do que pensava o compositor Claude Debussy, quando exerceu a atividade de crítico: “Não tenho a pretensão de fazer "crítica", mas de expor, simples e francamente, minhas impressões. O que se deve fazer é descobrir os principais impulsos que deram origem às obras de arte e o princípio vivo que as constitui."
O meu propósito ao apresentar o romance Tempos de Olívia, de Patricia Maês, dialoga com as colocações acima. E a pergunta que me fiz ao terminar de ler o seu livro foi justamente esta: qual o princípio vivo que constitui esta obra? Que elemento torna importante ao mundo contemporâneo a necessidade de sua existência?
Entre a necessidade de expor minhas impressões ou responder à difícil colocação do lugar dessa obra no contexto da criação contemporânea, optei pela primeira, mais fácil de resolver. No entanto, não posso deixar de opinar, mesmo que en passant, sobre a segunda questão. Creio que a resposta se encontra no interior do próprio livro, formulada pela escritora.
No centro do livro é narrada a crise criativa de uma personagem escritora. Dividida entre a necessidade vital de criar e a melancólica constatação de que isso se tornou impossível, ela afirma sistematicamente o lugar da arte e do artista num mundo de valores vazios, aquele mundo já denunciado por T. S. Eliot como o mundo dos “homens ocos”. Esse homem eliotiano, tal como o homem contemporâneo, é “sombra insaciável de aparências esplendorosas e aterradoras realidades; sombra mais escura que as sombras da noite e envolta nas dobras de uma deslumbrante eloquência vazia”, para emprestar as palavras de Joseph Conrad.
E creio que aqui esteja a resposta ao sentido de sua obra para nós contemporâneos.  Talvez, em Tempos de Olívia, se encontre uma das mais felizes definições do que seja a função de um artista hoje: “somos os gladiadores matando as feras que matariam os mais sensíveis.” Cada nova obra, como essa de Patricia Maês, que é um banho de poesia, resgata o humano das aterradoras superficialidades vazias, ou seja, da “desumanização dos homens”.
Tempos de Olívia é prosa, mas prosa poética. Não se deixa levar pela simples narração objetiva. Acrescenta timbres inusitados e colore com notas emocionais cada frase. Faz com que nos adentremos na turbulenta psique de sua personagem Olívia como se dentro de uma caverna escura pudéssemos sentir o frio das pedras, os desvãos das rochas, o intricado jogo de luz e sombra que nos confunde a realidade.
***
O que me proponho, a seguir, é apenas comentar algumas questões presentes no romance de Maês.
 
A CRISE
O medo diante da tela branca, da página sem uma palavra sequer escrita, de uma partitura muda: eis o drama do artista em momento de crise criadora. O mote principal do romance de Patricia Maês deriva desse drama. “O que houve comigo é que de repente abri mão de um caminho seguro e caí em um buraco de crise na criatividade.”
Diante da impossibilidade de criar, a personagem Olívia vai tecendo um universo amplo de investigações sobre si mesma e sobre sua relação com o mundo: seja o da arte, o do amor, o das amizades ou do seu público. No interior do romance, numa belíssima descrição, o drama do processo criador bloqueado:
“Estou vazia de tudo. Bebo muita água e nela não vem o sopro do “faça”. Nenhum anjo me dá a mão nesta hora de silêncio por dentro. Nunca senti isso, a falta de movimentação do espírito, falta de inquietação (...). É novo este nada por dentro, anseio do avesso, vontade de parar e não tocar em nada. Até minha respiração é hoje de outra natureza, natureza que contempla, sem querer transformar o visto em algo nunca visto.”
O resultado é devastador, uma paralisia da própria vida que vai se constituindo em torno da personagem:
“me vejo como há muito tempo não me via, a mulher que recebe vida, que sente na pele a vida, mas no entanto nada é feito disso, nada pode ser feito agora, e nem sei o motivo.”
              O drama da personagem é inicialmente exposto na ideia de que um cansaço a invadiu e é explicado pela ausência de ressonância de suas buscas espirituais e/ou artísticas no mundo externo, absolutamente vazio e superficial. Ela diz: “cansaço não de ofício, mas sim de existência interior para a qual não tenho visto correspondência nas coisas externas.”
O “fogaréu selvagem” que a consome durante todo o percurso da narrativa não é outra coisa que o resultado do desespero diante da incapacidade de criar. A arte é sua raison d´être, sua felicidade realizada, seu refúgio possível, a finalidade que justifica sua existência. “Para mim, é tudo o que conta”, diz Olívia. O mundo existe para ela em sua essência poética, mas tornar isso realidade para uma página em branco se tornou difícil, impossível, no momento.
“A observação de tudo, no momento, faz apenas com que eu guarde as impressões, sem ter nada a revelar do lado mais íntimo das coisas, aquilo que dependeria de mim para outro alguém vir a saber.”
A explicação sobre o sentido da existência dos artistas (esses “deuses tortos”) e da arte é produzida no mesmo movimento da crise de criação que a envolve. Gerando uma reflexão sobre o sentido da própria crise, revela o resultado que a literatura teria na vida de seus leitores. Ela diz, em termos claros qual é esse sentido:
“Saindo da realidade mais fremente, premente, entrando na ficção, as pessoas têm a chance da cura, do encontro com um lado de seus eus que ficavam à espreita aguardando oportunidades de espelhamento para se render à consciência.”
              O artista seria, então, numa bela metáfora criada por Patricia Maês, aquele que “coloca o coração na ponta da lança e o oferece às feras.” E sua missão é clara: “A beleza é nosso papel, e só por ela estamos aqui.”
A razão pela qual Platão excomungou o poeta da República se deve ao fato de que o artista cria a partir da liberdade que transcende a moral. Como resume o texto de Patricia Maês, é este artista que interessa: “Vamos defender a vida, Doug, numa concepção puramente artística e não moral.” Aqui ressoa a máxima de Oscar Wilde, em sua apresentação de “O Retrato de Dorian Gray”, que diz que “não existe isso de livros morais ou imorais. Livros são bem escritos ou mal escritos. E só.”
 
SENSUALISMO
“O que seria esse aroma de coisa roxa?”                    
Em Tempos de Olívia, há um sensualismo nas descrições do próprio corpo da personagem, das suas vestes, da própria aparência. Como diz Olívia, ao se apresentar:
“(...) herdei de minha mãe um porte absolutamente forte, um tronco esguio e alongado, braços delineados como se desenhados, como se os exercitasse numa piscina diariamente. Um mistério essa herança sem esforço, mas a beleza é um de meus dons e não posso fazer nada. O dorso firme cria em mim, de feição tão suave e delicada, um contraponto interessante e que prende. Delicadeza e força juntas, a chave para ser uma mulher que intriga, e eu sei disso.”
“O espelho é meu companheiro.”. Outra afirmação que parece dizer muito sobre Olívia: ela se vê primeiro para só depois ver o mundo. Uma sensação fica para o leitor, a de um corpo presente, insistentemente belo e sensual, e que parece ter, na determinação de ser o que é, um valor plástico/orgânico em si mesmo. Daí deriva boa parte de sua reflexão sobre o mundo, as pessoas, a sociedade onde trafega, num jogo de espelhos onde a imagem de si, enquanto corpo sensual ocupando espaços, se abre para conhecer da pele para dentro o exterior da realidade.
“(...) sinto o ar gelado da noite na colina entrando na minha roupa, resfriando a mulher quente de vinho, medo e desejos sem nome. (...) Sou um ser desgarrado de tudo, e meus músculos se contraem, meu sinal de força.”
Em um momento de susto, por exemplo, quando se perde na pousada e um homem quase a aprisiona no escuro, sua resposta ao medo é o cuidado feminino de si mesma. No simples ato de se pentear encontra sua força enquanto ser no mundo, livre e agente da ação que a faz se afirmar enquanto mulher:
“E me penteio obsessiva, gesto de mulher que quero saborear até o limite, a mão que corre pelo cabelo longo, o cheiro de limpeza e perfume de flor, a mulher que sou, a mulher que nunca vai desabar a ponto de perder isso. Eu sou bela e forte, e disse resoluta “me solta” à força que me prendia há pouco. Eu sou solta, sou solta, sou solta. Sou mulher e nunca fui vulgar.”
              O sentido da sensualidade atravessa o corpo de Olívia, principalmente nas escolhas das roupas que veste e que refletem bastante a situação existencial da personagem. A escrita que gera prazer na descrição de um simples vestido invade vários momentos do romance. Ao se deparar com a descrição seguinte: “Se eu vestir hoje novamente um vestido verde de flores brancas (...)”, o leitor poderia tomar para si o famoso verso “o meu pensamento tem a cor do seu vestido”, de uma letra do cantor mineiro Lô Borges.
Em várias outras passagens, o vestido é a medida dessa sensualidade:
“O vestido azul de Istambul não sai de minha pele há dias, há tempos, e ele deverá me acompanhar até o fim. (...). Na rua as pessoas me olham admiradas. Esse vestido de fato tem um algo a mais.”
O corpo de Olívia, além de simplesmente existir como uma presença estética encantadora é o dado mais vivo de sua autoconsciência de ser vivente, chegando mesmo a tornar-se encenação dessa existência:
“Sentada diante da mesa, o ato de partir o alimento já é em si uma obra de arte. Sou a atriz que diante de uma plateia lotada, faz a cena do pão sendo cortado, e isso é a coisa mais importante da peça. (...) Corto o pão, coloco o pedaço na boca e mastigo como quem mastiga este tempo presente, escolhido para ser inteiro meu. Estou comendo com o corpo inteiro. E nunca senti gosto tão maravilhoso.”
A sensualidade é o resultado da capacidade de se relacionar com o mundo a partir de sensações, do cruzamento do corpo com os objetos/seres animados ou inanimados. É o que acontece com Olívia, que não deve diferenciar seres e objetos na sua relação erótica com o mundo:
“Experimento anéis, levo-os para perto do rosto, como se eles realmente pudessem me dizer algo, mas é um carinho, apenas. Queria ter cada pedra dessas cravada em meu corpo, e eu inteira sendo a joia que leva as intimidades de outras figuras, guardadas desde os tempos em que essas maravilhas foram forjadas.”
Quando quer lidar com problemas, o corpo de Olívia responde em consonância com a natureza, numa oferenda sensual da nudez ao sol metafórico da indecisão:
“(...) hoje aprendo a lidar com o passado de forma lânguida e reverente e fresca, como a manhã em que eu quis me estender nua na varanda onde espirrava garoa fina junto com indecisos raios de sol.”
Ao transformar seu corpo, cortando o cabelo ou usando tal vestido, por exemplo, sua personalidade altera a sensação de si mesma, às vezes imprimindo segurança, força, autoconfiança, felicidade etc. É o corte do cabelo que a desnuda e é o toque do vestido, sua sensação na pele como fonte de prazer, que a deixa delicada:
“Adeus às lindas mechas, e agora é meu rosto inteiro, pleno e quase desprovido de moldura, que se mostra assim adiante de tudo o que eu sou, o que vem na frente e se revela em primeira mão. E o toque doce de mim vem na roupa, ah, sim, a mesma, meus vestidos, dos quais jamais abrirei mão. Estou tão delicada e forte ao mesmo tempo, e sinto por mim mesma um orgulho também indescritível, como tudo atualmente.”
Patricia Maês consegue criar na sua literatura algo raro entre as escritoras mulheres. Seu poder de transformar em literatura as sensações do corpo feminino em sua relação erótica com as roupas, sem apelo fetichista, numa clave de pulsão libidinal delicada que a transforma numa  sofisticada escritora fenomenológica do universo da mulher. Uma escrita que gera, além do “prazer do texto” (no sentido reclamado por Roland Barthes), a revelação, na intimidade da linguagem, do sentido da intimidade do feminino.
 
O OUTRO SI MESMO
Em relação à personagem Ana Beatriz, a escritora tem um olhar analítico, que observa a partir de pequenos detalhes o fiasco de uma existência em profundo desmoronamento. Mas essa atenção ao outro é a forma que a autora encontra para que Olívia investigue seu próprio eu, na diferença, no que do outro recolheu de melhor para si mesma, aquilo que na outra, talvez, nunca tenha existido de fato. O resultado do encontro é drasticamente revelador: “meu modelo de felicidade feneceu”.
É também como resultado desse encontro que Olívia investiga as consequências de sua relação com o ato criador e, consequentemente, com o seu respectivo púbico. Nesse sentido, é bastante interessante a seguinte questão colocada por Olívia:
“Será esse então o problema do perigo do público? Quando as pessoas confundem  tudo, e acham que são não somente o alvo da obra como também foram parte da mágica de sua criação?”
No entanto, há algo mais nessa relação: Olívia está se colocando diante de si mesma em relação ao nada que a possui a todo instante. É significativa a frase: “apenas não estou destruída por fora”.
Interiormente meio à deriva, como acontece aos personagens do cinema de Bergman, Olívia retoma sempre mais um outro, agora na  persona de Emile Flöge. Numa autotorturante investigação de si mesma, ela procura resquícios/ajuda de um tempo que foi diferente, para que possa continuar sua busca por uma saída de um presente que lhe parece massacrante e do qual deseja escapar. Seu drama ainda é o do sofrimento causado pela incapacidade de criar. Por isso não consegue sair do labirinto de espelhos que a aprisiona.
 
O AMOR AUSENTE
Rodrigo é o namorado de Olívia. Desejo e frustração envolvem os dois personagens. A incompletude que o amor provoca naqueles que a ele não se entregam totalmente marca os dois personagens. São artistas que precisam do afastamento, da solidão, para criar e, ao mesmo tempo, precisando um do outro: pode o desejo conviver com essa contradição?
“E onde está Rodrigo em uma hora dessas, hora em que eu quase poderia ter sido assassinada? Resposta: no Butão. Que espécie de namorado vai ao Butão sem se despedir direito de sua amada?”
Ao mesmo tempo em que acusa a ausência, acusa a si mesma: “Eu sinto o peso das palavras nunca ditas a ele, a enganação de minha presença, no íntimo sempre lamentando a ausência de um outro.”
O vazio que se instaura na personagem nos parece fruto de sua inadequação em realizar-se plenamente no amor, ou no amor que um dia sonhou/desejou ter. Esse amor absoluto que suplantaria todas as “dores do mundo” não parece ter se efetuado. Em relação a Rodrigo, seu namorado, e a si mesma, resta o melancólico comentário: “Tenho pena de nós dois, de nosso desencontro antes de uma troca verdadeira e mais fértil.”
Olívia não se dispõe ao risco (Rodrigo se arriscaria?) do sublime. A conclusão é que o temor prevalece na relação, dado o perigo letal que é amar: “Desvendar o sublime pode ser perigoso, e pode ser a morte do coração.” Talvez a criação artística, sua raison d´être, seja a única possibilidade de algo que possa rivalizar com o sentimento oceânico da paixão.
 
EXISTE SAÍDA?
Diante da condição de seres frágeis que somos, facilmente quebráveis e, pior ainda para os artistas, seres plenos dessa consciência, cumpre perguntar: que saída se poderia encontrar? No embate com a persona de Ana Beatriz, a resposta de Olivia é uma sucessão de negativas que coloca para si mesma: “O alcoolismo não é uma saída, a loucura não é uma saída, a noite escura não é uma saída.”
Então, onde encontrar a porta de saída ou a entrada ideal para uma vida plena (com seus milagres e horrores)?  Olívia tem a resposta:
“Tenho de me ver com minha arte, tenho de ser o que sou, abraçar cada instante como este em que dirijo através de uma paisagem iluminada de borboletas azuis e brancas, o ensejo de uma brilhante ideia que, se me for dada, devolverei ao mundo como agradecimento por tudo, por tanta vida, por tanta glória.”
Talvez a mesma saída apontada por Nietzsche contra o paralisante niilismo seja mesmo a arte, nos salvando da verdade e constituindo no sujeito o único lugar possível de expressão da absoluta liberdade: a criação. Tal qual se edificou no romance que vamos ler. O resultado é que a autora deu a si mesma e a nós “o presente de viver uma delicadeza”.
Para o leitor do romance creio que vale a pena reproduzir, antecipadamente, uma bela reflexão de Olívia sobre o significado da delicadeza:
“Sou firme, e sei ser delicada. Só os delicados sobrevivem. Só os realmente delicados sabem das forças, aceitam a natureza com seus mandos e desmandos, entendem a brutalidade e a contornam, porque só os delicados veem tudo. A vida não é real para os brutos, pois eles têm a mente e os olhos turvados. Pensam que nascem  para vencer, mas na sua couraça se perde a grande glória de saber sentir-se uma vez na vida um ser que recebe a vida, conceber a receptividade no sentido mais feminino da ideia, como um ganho incomparável. Porque a vida de verdade, a grande vida, essa é a brisa que te acaricia de leve a pele, te sopra um segredo único e íntimo e de pureza de diamante, diante da matança que é nossa condição. Só os delicados sobrevivem intactos, porque na delicadeza a essência da vitalidade está envolta por um material que nunca se desfaz, e por nada. A delicadeza é teimosa, ela não se dá por vencida. A delicadeza é. E pronto.”
Por fim, depois da longa batalha com a folha branca, retomando sua criação, Olívia entende o sentido do circulo infernal onde penetrou e de onde saiu:
“O círculo sou eu, vejo agora. A razão de eu ter admirado essa forma perfeita aqui na esquina era o espelhamento. Eu me via o círculo feito para que tudo passe em volta, rodeando, contornando e adornando a existência. Eu sou essa forma perfeita. E vou fazer meu trabalho, como é meu dever.”
Fechado o círculo da criação, o amor pode aparecer, deixando Olívia “tão leve e vulnerável que a menor brisa pode levar longe.”
E a metáfora do corpo, lugar de comunicação entre Olívia e o mundo, reaparece: “Uma obra pronta é como um corpo ao sol querendo ser visto.”
E aqui estamos nós, leitores, prontos para a delícia dessa visão.