modular é necessário







sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

a rotatória - vestida como Emilie Flöge


A ROTATÓRIA
Faz frio na rua, mas tento acreditar que meu vestido de mangas longas e fartas em tecido me suprirá. O vento ajudará a secar o sangue da mão. Na pequena ladeira sinto os tornozelos pouco firmes sobre os saltos, mas posso equilibrar a taça e a garrafa de vinho. Finalmente a esquina, e chego nela como quem chega numa dobra da minha alma, o caminho com opções a oferecer, objetivamente quatro direções. Preciso analisar esse número. Minhas opções não são poucas porque sou antes de tudo uma pessoa inventiva. Finalmente pisar dentro do círculo perfeito da rotatória admirada há anos tão de longe. Céus, como venta aqui... e me posiciono bem ao centro do círculo, levanto minha taça e escolho brindar ao que virá, sem pensar em decisões, sem forçar a saída para um dos destinos possíveis. Encaro como triunfo estar no centro da forma recomeçando de qualquer ponto, um palco para encenar a nova aquisição, a libertadora falta do que fazer, sem preocupações de nenhuma natureza, minha arena em que eu mesma me assisto sem susto.
Um carro se aproxima descendo a ladeira, mas estou protegida porque estou dentro da rotatória. Do lado oposto, como coincidência, vem outro carro e joga um farol alto na minha direção, talvez advertência para eu não cruzar a rua. Como resposta, o primeiro carro também sobe o farol para cima de mim, e de repente, nas travessas perpendiculares outros dois carros se dirigem à mesma esquina, ambos abusando da maldita luz forte. Os carros se movimentam, mas não chegam nunca, e eu parada começo a me perceber na mira dos quatro, suas luzes me escancarando assim, essa pessoa fazendo algo um tanto incomum a julgar pelo que seguro em minhas mãos, a julgar pela minha paralisia, pelo meu vestido de cores psicodélicas, pelo horário. As luzes de fato não chegam, o tempo se espichou e eu me sinto virando uma estátua, petrificada por fora, mas me contorcendo de medo por dentro. Sou uma farsa aqui tentando brindar, brindar para quê? Eu deveria estar em outro lugar, então? O tempo parou, e eu estou ameaçada, protegida por nada com meu vestido esvoaçando gelado dentro do círculo que é só um desenho no chão, meu copo quase caindo já que minha mão voltou a doer, as luzes como uma acusação, como advertência de que estou errada, lugar errado, hora errada, sangue errado. Mas a errada não sou eu. Os carros e seus faróis se aproximam como se fossem todos colidir, sem contornar meu círculo invólucro de coisa alguma. Como eu queria minha rotatória me acolhendo melhor neste momento, em que não precisaria ser difícil estar parada aqui. Pode ser madrugada, posso ter vinho nas mãos, sangue escorrendo, essas estampas vibrantes revelando uma pretensão agora mesmo desbancada de me parecer com uma pintura de Klimt, mas o que repentinamente acorda meus olhos ofuscados dos faróis ameaçadores, faróis tão acusativos, é que neste exato instante eles apenas clareiam que tudo o que andei enumerando ao meu redor e pretendendo me traduzir minimamente admirável, não existe. O que existe é Olívia sozinha, e isso não é nada saboroso nem natural. E destoa de tudo o que eu poderia julgar aceitável, eu, a tão pronta nas definições e julgamentos de tudo. As luzes me escancaram nessa arena inventada e para onde vim como alguém adornada e lindamente preparada para descortinar sua absurda e desmedida miséria. Sou só. Só de tudo. Estou nesta madrugada, largada no meio de uma encruzilhada, debaixo de um céu roxo e sem estrelas teimando em não amanhecer, o ar não inspirando movimento mesmo ventando assim tão forte, mesmo com os carros se aproximando agora bruscamente e fazendo tremer tanto, porque tudo se desloca e a estagnação é só minha, só decorrente dessa estúpida solidão.

natureza e mimetismo - trecho de Tempos de Olívia

A natureza me ensinou uma coisa: dói menos quando nos infiltramos, quando nos rendemos. Eu gosto de escrever meu mimetismo com as coisas da natureza, porque nos correspondemos, eu e ela. Foi um aviso de sabedoria em minha vida quando entendi minha relação com o mundo natural. É uma relação de aceitação quanto às fragilidades. Na natureza só temos vontade de dizer: não me machuque! Ao passo em que é justamente em contato com ela que podemos nos fortalecer. Porque no mundo natural tem a tal respiração, meu tema. Hoje estou cansada de tanto trabalho, e talvez por isso esteja sofrendo da falta de ideias. Além disso despejei em meu último texto tudo o que pensava e sentia por meu Nyx, atitude ousada e brava. Fui tanto até os limites, que já sei até da situação de corpos putrefatos, das vestes de suor das mulheres açoitadas e esquecidas. Assim a morte fica próxima e faço questão de encará-la para entender melhor as sutilezas do medo do tempo. Quanta ruína ainda vou ter de ver... e a única resposta a tudo isso é continuar desafiando o esquecimento através do meu trabalho, disso que posso fazer.
Eu capturo o corpo escapando, solto o que o flash quer segurar, solto tudo, deixo as imagens em revoada revolta dentro do espaço delimitado pelos escombros do íntimo de cada personagem, e assim provo que a liberdade existe em qualquer circunstância, mesmo na dor mais aguda. Está tudo solto, eu sou solta.

trecho de "Tempos de Olívia"


Penso em artistas que sofreram o mesmo infortúnio e depois tiveram sua volta. Em quem me inspirarei para ter a fé? Terei de recorrer às referências de pessoas mais brilhantes do que os artistas ao meu redor. Este tempo não está muito rico de ideais tão luminosos, meus contemporâneos precisariam estudar mais e ter o hábito de querer descobrir na grande história as suas inspirações. Tanta coisa já foi feita, sim, e existe até uma música de alguém que considero um gênio, questionando sobre o que haveria para ser dito hoje em dia, depois do todo já visto. Vivemos em um território difícil para os criadores? Ora, vamos deixar de bobagem. Há a vida a ser observada e isso não se esgota. Na falta de algo absolutamente novo, olhe em volta, porque os grandes que nos precederam indicam sem parar vários caminhos explorados apenas em sua superficialidade, e muitas vezes de propósito, para o prazer quase irônico de um desprendimento como quem quer viver passando a bola por pura generosidade, ou mesmo misericórdia. Isso nos é entregue em uma bandeja toda polida e luminosa. Para quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir, as dicas estão aí, claras.

Por que falo disso com tanto conhecimento de causa logo neste exato momento? Agora ninguém me socorre com um sinal sequer de algo que poderia me mover a esmiuçar um tema, como sempre foi de meu instinto, esse instinto de espremer as impressões do mundo com uma selvageria que sorve tanto, e quase até o esgotamento de toda energia, a essência de situações, imagens de pessoas, as vozes mais impressionantes a que tenho acesso, as respirações entre as frases das canções suspendendo por instantes a minha própria respiração. Que canção me supriria hoje, assim tão desarticulada? O que eu fiz? Alguém pode me dizer?


de cores - trecho de "Tempos de Olívia"



DE CORES
Ele tem a habilidade de sobrepor as cores como transparências se interpenetrando sem, contudo, haver mistura. Seus planos continuam independentes. É a vontade de entrar na sua obra que me manteve ligada nas piores ocasiões. Eu recorria a algumas de suas músicas para me conformar quando a injustiça se fazia. Ele me fazia redescobrir o instinto de sobrevivência nas horas em que queria desistir de ser o que eu era, e me recobrava a alegria, a confiança de que nada era só, e sim uma grande dança harmônica. O mundo em partes se recompunha por causa da esperança na beleza à qual aquilo tudo me devolvia. Eu pensava que a desarmonia era finita só de imaginar compreender os entremeios daquelas sobreposições transparentes, como brilhos se intercalando, e quando conseguia me deslocar até ali, ouvir ao redor, no ambiente tomado pelas melodias fulgurantes, as camadas me envolvendo e eu no olho de um furacão me trazendo de volta ao lar. Sempre o contrário do normal, de qualquer normalidade. Tirando-me de meu centro ele me devolvia ao cerne daquilo que eu desejava desde sempre ser, e que estava em mim, no meu olhar, na minha capacidade de fazer essa transposição, ficar diminuta e entrar na obra, ativar os sentidos ajustados para outra espacialidade, a sugestão daquelas harmonias desde que eu estivesse penetrando suas fases todas, vendo minha própria face espelhada enquanto eu chegava pelos meandros mais inesperados reservados pelas dissonâncias. Foi a mais perfeita arquitetura a que tive acesso. Sou uma expectadora consciente de minha procura, mas sou surpreendida pelo que vejo a mais, e esse a mais é constante, sempre se apresenta. Como uma música que ouvimos milhões de vezes e a cada vez nos revela outros fraseados no arranjo elaborado para a sua apreciação nunca ter fim. Eu fui cooptada desde a primeira audição. Música espelho. Música de camadas transparentes, se revezando na intensidade, ora uma, ora outra se sobressaindo e eu escutando e mergulhando na cor. A cor ao lado de outra cor, que é atrás, e é na frente. Contraponto e harmonia. A música dele e as minhas possibilidades de alegria são tão correspondentes que se aquele rapaz do violino estivesse aqui e eu tivesse de conversar com ele sobre beleza e plenitude, lhe apresentaria algumas dessas obras. O silêncio certamente se faria, e a música começaria logo em seguida, assim que estivéssemos os dois rindo de tanta satisfação pela ausência de solidão artística que aquela imensidão de brilhos explosivos se entrelaçando sugere a qualquer criatura criadora. Assim é a música de meu Nyx.