modular é necessário







quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Tempos de Olívia


Primeira parte - A Excelência

 

Pronto, pesquei. Uma verdade escondida que mudou a direção dos pensamentos do dia. Hoje conversando com uma amiga, ela me contava do filme onde uma mulher descobria ter apenas mais oito semanas de vida, e exclamei com tanta naturalidade: que maravilha! E eu mesma fiquei surpreendida demais. Minha amiga não comentou nada. O diagnóstico para a inveja tão exclamativa em relação ao triste destino da personagem do filme é meu cansaço sem nome, cansaço não de ofício, mas sim de existência interior para a qual não tenho visto correspondência nas coisas externas. A espiritualidade tem sido muito exercitada por aqui, mas a quietude, amiga desde sempre, não tem trazido a paz de costume. Só questionamentos que nunca deságuam em campos mais esclarecidos, propiciadores de dissolução das dúvidas e dívidas com o próximo. É período de acumulação, e tudo que chega apenas fica, fica, faz mais peso e ocupa mais espaço. Eu tenho de me livrar de coisas, para não querer mais me livrar da vida, como me pareceu ao exclamar tão favoravelmente ao enredo do filme terrível.

Com calma eu analiso o passo mais recente e sei da vantagem de saber tomar decisões nesses momentos cruciais, onde a razão importa menos do que a coragem de dizer sim ou não, de supetão, quando o momento de saltar se apresenta. O saltar. A chance de ruptura, mesmo parecendo loucura. E eu sou uma que rompe, ousa dizer o sim e o não da dissolução, do desmoronamento que pode me levar além de onde estou. Nada a declarar a quem não me entender de pronto. Mentira, tenho paciência, e tal preciosa matéria extraio também do fogo do meu talento. Serei sucinta, direta e sincera. E este é o meu momento. Meu. Ele é meu. Seguro o tempo desse acontecimento e com ele espero fazer algo por mim mesma. Nessa volta por dentro acharei o novo que no entanto sempre esteve aqui. Nada é por acaso e se largo algo, se abro os dedos e deixo o pássaro voar, é porque isso estava escrito, e escrito por mim mesma, a que inventa tudo, a que acha na lama ou na delícia pepitas garimpadas com suor de alma. Eu vou ao meu garimpo hoje sem os instrumentos de lavagem das pedras duras e feias. Vou ao meu local de tirar do chão a preciosidade, às vezes da terra seca, às vezes de pedra brutalmente cavada com minhas unhas de princesa, mas vou apenas olhar. E sei da aridez de se viver cultivando no agreste, viver do garimpo no lodo, da pesca no mangue, e de matar a sede com a água do poço cavado bem fundo. Tudo muito áspero e dramático? Nada. Minha vida é feita de saber dosar o drama, e a tragédia disso é ele não se dosar jamais na tranqüilidade. Somos criaturas que atravessam vales de sombras porque nas sombras estão as ideias, não há jeito. De luminosidade fazemos nosso caminho apenas no depois dos achados mais importantes, porque o durante é de caos, escuridão e medo. Medo de nunca achar nada melhor, medo de não ter mais as unhas que cavam e de não ter mais a sustentação na hora de escalar a pedra mais alta que nos desafia, e quando pressentimos o tesouro do dia lá em cima. O mesmo se dá para baixo, nos abismos que tememos não termos a disposição de espírito para mergulhar. Nada assusta mais do que não ter coragem suficiente, o mesmo que então não merecer tirar a espada da pedra. A coragem é nossa matéria prima, antes de qualquer outra a se apresentar. Queremos merecer mais do que ninguém, queremos a glória da ciência que desvenda, desvenda o destino e clareia a trilha nos outros vales, e isso para variadas multidões. Queremos dizer às multidões do caminho seguro e firme, onde o chão jamais cederá. Somos artistas e o que sabemos é de vidas imbuídas de missões, de gritos precedendo as grandes calamidades como que alertando às almas afins de que fomos à frente, e sabemos indicar a direção mais reta até a cobiçada grandeza de espírito. Já fomos e voltamos pelos campos do conhecimento adquirido dando a força do corpo como escudo para os males que há tanto a humanidade cansou de ver e se desviar por pura aflição, a pequeneza da qual todos se esquivam tanto, que pretendem ignorar com total afinco, fingem nem tomar conhecimento. Somos os arautos da libertação para aqueles que não dormem e não sabem, somos os gladiadores matando as feras que matariam os mais sensíveis. E assim eles podem se aproximar melhor da pedra, quando querem. E ela já está polida, carregada da proteção da beleza.  A beleza é nosso papel, e só por ela estamos aqui.

Maledicência e morte. Dificuldade e superação. Redenção pela simples crença de que quanto maiores os pecados inspecionados maior será a ventura de ter o que dizer ao próximo. Por isso procuramos no ser humano seu lado mais flagrantemente desumano, o mais cruel afirmando nada ter visto de errado no momento em que matava seu semelhante com o olhar de desprezo por sua maior agonia. É dessa invasão na alma do mal que se explica nossa incrível capacidade de doação, porque dói presenciar e narrar mediocridades. O medíocre nos agride e nem por isso passamos direto por ele. Ao contrário, vamos ter com ele e o interpelamos nas profundezas das razões mais amargamente obscuras para que suas ações se deem tão distantes da graça que desejaríamos proclamar como definitiva na vida de todos nós. Mas da miséria dele tiramos o exemplo da superação ou talvez a misericórdia de quem olha e admite uma existência diversa. É nossa a imensa dor e tantas vezes, alquebrados, pedimos clemência por ter de ver tamanha brutalidade na realidade de existir do começo ao fim, sem pausa e sem tréguas. Existir neste mundo e ser uma pessoa. A tarefa magnânima. E juramos que estamos aqui para facilitar as coisas. Que assim seja.

das tempestades - primeiro capítulo


 
 
Minha mãe pressentia coisas naquela tarde. Não sabia o que o vento ao contrário queria dizer, mas sabia, pela natureza de mulher que se emparelha com a outra, a da magia de bicho e árvores, que algo era mudança. Julgava a simplicidade do fato a partir de seu cabelo arrepiando diferente assim que soprou o vento torto, e seu corpo de mulher reagindo a uma sensação nova enquanto passava a escova tentando ajeitar o sentimento, como se eles se alinhassem junto com as mechas. Ela queria domar sua intuição, e percebeu isso logo, desistindo de escovar a sorte.
Eu estava para nascer, e sua barriga já era de nove meses. Por esse motivo, nada mais natural que forças da natureza falassem com ela de um jeito mais intimista, que os recados do vento e do mormaço fossem entregues ao seu entendimento rapidamente, suave feição do tempo fazendo na pele sensações. Ela lia nas entrelinhas dos acontecimentos, não queria racionalizar tudo e nem poderia, mas tinha nas veias a palavra “sei” correndo solta, os membros em alerta como se tivesse de agarrar uma ave que passasse de repente. Um salto e um abraço, encolhimento e aconchego, ela estava pronta.
No anoitecer o homem avisou que escolhera sair. Os barcos na prainha arrumados em fileira, pessoas de todas as idades com cenho franzido em preocupação. Não teria sido só dela o presságio. E assim foi que na noite mais alta saíram todos, e o marido puxou a mulher pela mão, sem palavras indicando que era para não ter medo.
No barco que balançava ela duvidava de coisas das mais variadas. As intenções incompreensíveis do outro , o motivo que ele teria para arrastá-la na aventura noturna. Pescaria era coisa dos homens, e na mente dela esse pensamento se misturava com outros, gerando a mesma confusão. Quanta dúvida. Olhava o marido sem captá-lo, embora entendesse até a natureza daquela viração que se anunciava. “E homem tem coração?” Pensava e não respondia... “mas diz que tem”... e sossegava só quando lembrava do desejo de sua barriga desaguar um menino. Isso porque a mulher sofre mais, padece dessas dúvidas todas e morre sempre sem resposta. Que a vida não dá fácil o repouso para aquelas que questionam, não se revela à toa nem para ela que arregala os olhos tanto e tanto, quando observa esse homem, ele na frente do barco, e justamente o primeiro a admitir em voz alta que vai chover.
Os pingos caem grossos já desde o começo, e minha mãe olha o ventre, a água que molha o invólucro da cria que está prestes a chegar, e que deve ouvir o som de cada gota.
Ela não queria estar ali. E ele sabia disso? Perguntava em segredo de si mesma, de novo.
A barriga encharcada e o barco fazendo água. Os homens esvaziaram latas de chumbinho para as tarrafas, e com essas latas jogavam a água para fora da canoa. O barco se estreitava, na maneira como ela ia sentindo. As costas mal apoiadas na madeira que era dura e  não servia para apoiar a dor. Mal estar sem descanso nos últimos dias, a espinha em fogo, e agora nem esse vento molhado, a rajada fria que de repente faz  os homens passarem a bufar como em arrependimento que não se diz. Nada disso é remédio e faz amenizar o peso. Mulher prestes a parir tem de recostar e respirar com calma, mas ela tinha o coração acelerado e tudo era de tal forma sem sentido que uma apatia a tomou de súbito, afinal de nada servia naquela hora sentir coisas, de nada servia ter sentimento em desalinho com a situação. O barco estava no meio do mar, era alta noite, e os homens lutavam contra um naufrágio. À beira do abismo ninguém reclama além de um suspiro. Nada a fazer, nada a pensar. Ela lamentava quieta, e como recurso último de sua parca vontade, escolheu não mais olhar o homem da ponta do barco, seu marido para quem não tinha mais nome para dar.
Os olhos pesavam, a água caía forte. As pálpebras escurecidas de minha mãe pareciam a conversão em sombra, do choro que de nada adiantaria ter saído. Desde o primeiro filho uma voz a acompanhava por dentro, mexendo em ferida que ela nunca queria cutucar. Deixava quieta, junto com as dúvidas, as perguntas sem resposta sobre o coração dos outros, as próprias penas, e tudo corria para dentro das latas agora. A fúria deles todos, tentando não afundar.
 
Natureza não assusta. O que amedronta é o coração dos homens. Minha mãe tinha razão para não olhar mais para frente. Abaixara-se encolhida como podia, uma concha olhando a própria barriga encharcada. Ela fez uma escolha em segredo, ficar impávida, sem julgar o balanço piorando a cada onda que pulavam e que contavam como uma a menos. Estavam indo em direção à margem. E aquilo era rio ou era mar? Ela não sentia o sal. Então chorava? Era por ter lágrima correndo que o sal se disfarçava em coisa tão natural? Nem sabia o que seus olhos aprontavam. O coração disparado era o mais importante. As batidas que nunca esqueceria assim como aquela imagem da barriga molhada. Tudo isso seria eterno.
Chegaram na praia. O homem da frente saltou primeiro do barco, olhou para ela e veio ajuda-la a se levantar. Foi então que minha mãe viu de novo o rosto de meu pai. Este agora mais interado de sua condição, a julgar pela seriedade com que a tirou de sua posição encruada, a concha respirando arfante na ponta de trás da embarcação. Os olhos de minha mãe deviam estar denunciando a viração maior ainda, o seu corpo é que precisava chover agora, de alguma forma.
Eu estava chegando, e no aguaceiro, meu pai indicou logo adiante um casebre vazio. A grávida ainda mais quieta. Outra dúvida surgia e era para a sua coleção de perguntas que não se responde. Como meu pai sabia do casebre, como aquele refúgio existia, como era fácil de repente sair da situação tão adversa?
Na salinha uma cama foi para minha mãe o que de melhor o mundo poderia lhe oferecer. Ela era grata por estar embaixo de um teto. Sua roupa molhada, seu cabelo pingando, a água que não sabia se era doce ou salgada, o som no telhado de folhas, a cor das paredes nuas, o nada que se apresentava lá dentro, todo um mundo desordenado. Ela continuava resignada, olhos escuros olhando a noite escura, sem dizer o que pensava, porque pensava demais e isso tinha finalmente de virar sentimento, caso contrário desandaria a falar. As forças teriam de ser reservadas agora a atender os mandos da natureza que dela mesma nascia, o corpo que se contorcia para que outras águas achassem seu nicho de correr, o rio caudaloso prestes a desaguar, o choro que desanuviaria por fim o medo. Medo. Medo de tudo. Tanto medo que até o momento último da sua hora, ela não soltaria um gemido sequer.
O homem veio com uma pequena vasilha e lá dentro tinha um pouco de água. Era tudo o que tínhamos, eu já então participando do evento. Foi meu pai quem ajudou minha mãe na hora mais difícil. Me puxou para fora, e ficou surpreso com o que viu. A primeira preocupação de minha mãe foi perguntar se era homem, o filho que ela queria que nunca sofresse. Mas meu pai lhe deu a notícia de que eu era mulher, e logo exclamou ser muito estranho criança nascer de bruços, com as duas mãos tampando o rosto, como quem sai sem querer sair. No fundo dos pensamentos de minha mãe, sem saber um resquício mínimo disso, havia a ideia de que era óbvio. Eu não queria ter como primeira visão neste mundo o rosto de um homem, de um ser que encerra perguntas que não se respondem, pois eu seria uma pessoa de grandes perguntas, e nunca sossegaria com a resposta de que não havia resposta. Eu seria uma mulher de solução.
Não sabiam cortar o cordão umbilical, e como meu pai estava mesmo familiarizado com a região, sabia da índia por perto que poderia ajudá-los. A mulher foi trazida, fez seu serviço, me segurou nos braços e sempre em silêncio olhava para um e para outro. Outros segredos, pensou minha mãe sem dizer, de novo, nada. E a índia entregou-me em seus braços vaticinando: essa nunca vai ter filho. Minha mãe sem dizer, mas em íntima quase oração, desejou que se fosse para sair mulher, que eu não tivesse mesmo.
O que foi previsto se cumpriu. Nunca tive filhos. Saímos daquele casebre para que eu crescesse em outros cantos, viajasse e visse muita coisa, mas de dentro de mim brotaram sempre palavras, questões, e a negação ao jeito de quem se resigna a não querer resposta. Eu pari perguntas por toda minha vida.
E é esta a vida que revejo desde o começo, como quem quer passar a limpo uma história inaugurada no mistério, nas águas escuras de uma noite virada, na lua que mudava e deixava marés inquietas. Eu procuro as respostas que ela nunca ousou reivindicar. Meus temores são de verdade. Meus olhos indagam como os de minha mãe naquela noite, e meu ventre também vive todo encharcado.

domingo, 24 de junho de 2012

conto com sentido



Parece que todo mundo só vive quando não em trânsito, que o tempo entre uma coisa e outra, entre um lugar e outro, não é tempo. A hora dentro do carro também conta como hora de vida, e mesmo com a cidade barulhenta, os motoristas apressados e nada altruístas, o vandalismo dos borrões sem mensagem nas paredes que maltratam qualquer bom gosto, é preciso sabedoria para se entender com o bem estar também nessa situação. O cruzar é vida, é tempo de lembrar a música, questionar como se fosse terapia, lamentar a própria imprudência ao parar sobre a faixa de pedestres. Tudo é estrada, e parte do trafegar bem é, sim, escolha. E na grande maioria dos dias, a escolha dela é o som da respiração que vai mudando de intensidade por pura experimentação.
Sossego considerável ao volante. Tempos depois, acabará atinando que essa paz conquistada era a porta aberta justamente ao melhor de gostar tanto de respirar, porque nada fica sem resposta. O peito é elástico, infla, muda. E mudar é abençoado. O que mudaria? Na hora isso não nos ocorre.
Ela solta a respiração com gemidos, gemidos sentidos, e sempre teve mania de suspirar. Quando era adolescente o fazia ainda mais, suspirava lembrando da aula de canto, o olhar da professora que duvidava que ela atingisse o tal sentimento que aquelas músicas pediam. Canções de sofrimento por perdas, de amores doídos, e a menina nada desabrochada cantava forçando nos agudos, tentando achar sua voz. “Uma soprano enrustida”, disse a senhora, “só que muito talentosa”. Mas queria ser contralto, queria outra forma de se colocar no mundo... mais força, já que associava ainda a força ao que é grave e popularmente chamado de grosso. “Fulana tem voz grossa”... logo é de alma que suporta o peso, tem sustentação larga. A idéia e sinal de masculinidade seriam revistas só bem mais tarde, e assim, o feminino e suas coragens ditadas por exatas delicadezas, também.
Hoje se lembra das “suspiradas” da adolescência neste mesmo percurso, o mesmo caminho, só que dentro de um ônibus quando voltava da escola. Cansada de estudo e cadernos no colo. Corpo ainda por se formar na espera da hora em que as delicadezas se imporiam, a mulher gritaria e pediria silêncio às demais vozes, os outros clamores internos que não deixavam que o principal se fizesse mais notável. A voz aguardada era voz de destaque de uma vida, e seria guia das escolhas e interesses que raramente mudam. A voz a colocaria inteira diante da constatação de que era quem era.  Suspiro grave ou suspiro agudo, canto grave ou canto agudo, tudo seria de base larga, a maneira como se expressava era de gente decidida e isso já era o mundo ganho, porque ela queria ser dona de seu nariz e do corpo inteiro.
Há a calma e ela queria ensinar respiração. Ministrar cursos de prazer com o ar seria de nobreza absoluta. Um anúncio no jornal? Seus amigos não se interessavam pela ciência longamente sistematizada, compêndios escritos ao longo dos anos, enquanto sentia crescer a mudança, o apurar da técnica, idéias de descobertas a mais. E isso ia se desenvolvendo sem pretensão nos intervalos de qualquer atividade, anotações impulsivas nas agendas sempre à mão, aquilo que agregava mais valor ao dia e a fazia sorrir. Anotava tudo o que descobria sobre essa arte, às vezes pequenas mas significativas observações sobre como o corpo respondia a tudo. Agora ela aperta suas coxas deixando-as marcadas, inspira junto com o movimento dos dedos, em garra. Mas só a pele na pele não adianta. O movimento do ar entrando e saindo é que dá a idéia da temperatura do contato. Sim, como não acreditavam nela? Quanto prazer desperdiçado.
Pegou para si um cheiro de gasolina perto de uma esquina e o cheiro de restaurante na outra. Só que não é sentir simplesmente, e sim respirar cheiro. É outra qualidade de receber, que é mais uma incorporação, é deixar que aquilo penetre e faça parte do fluxo contínuo de movimentação dentro, rearranjo de todos os tecidos e então quando as reentrâncias se alimentam do que passa, limpo ou sujo nem importa. São acontecimentos do trajeto e nele tudo acaba em delícia, porque ela quer assim.
Em que circunstâncias da vida esqueceu-se que isso opera milagres? Ah, foram muitas... tantas vezes nem lhe ocorreu que acionando a respiração consciente mudava o que se chama de “ar da sua graça”, e assim transformava as respostas a qualquer estímulo que jogasse no mundo. As pessoas são permeáveis à maneira como respiramos, e negligenciar o fato nas horas importantes era de tal forma amadorismo, que não queria mais passar por tal experiência. Precisava de domínio total. Tanto queria a excelência que pensava em ensinar. Só se ensina aquilo que se deseja aprender. Ela quer mais. “Hoje eu respiro plenamente? Estou no meu limite?”... não tem ideia, mas como se sabe, na hora isso não nos ocorre. O que podemos saber de tudo o que sabemos, ainda é pouco perto de tudo o que não se pode saber. “Então as respostas viriam até mim como?” - insiste. Crê na ocorrência de um fato revelador. “Será que respiro assim porque há nisso interesses? Não é prazer em si, é prazer que quer chamar outro? Isso não vale.” Não mais apertou as coxas. Olhou séria a avenida à frente, e freou com o susto que virou grito. Falha de atenção, presença fraca, e tudo o que pensara antes vai em um instante por água abaixo. A pessoa ausente sem saber-se ausente, isso piora tudo. Lástima. Estava dada a resposta: então respirar era só prazer querendo chamar outro, coisa grave de se descobrir a esta altura dos acontecimentos – e do compêndio.
O farol demorava a abrir e agora ela tinha pressa. O bom era acabar com aquilo logo, a viagem solitária dentro do carro, as divagações nunca compartilhadas, a arrogância de achar o ar mais benéfico nela do que nos demais só porque não queriam entender.
O fluxo segue na avenida, carros vão, apenas vão. Tristeza com o episódio do farol. Por se iludir, porque sim, porque antecipava as coisas, a chegada em casa, o descanso, e era mentira a vivência exclusiva no presente. Mentira a percepção ativada para fora e para dentro. Tudo era apenas para dentro, no futuro ou passado. E o mundo não mudaria por causa dela.
No farol mais adiante, o carro ao lado buzina e de repente a faz intuir que alguém a chama. Há um homem debruçado sobre o banco do passageiro, inclinado na sua direção. Ela percebe com o canto da visão, até que olha.
O tempo previsível do trajeto, a experiência do momento, a pretensa meditação acalmando as atividades do dia, preparação para a chegada, nada disso existe mais a partir de então. Ela já não sabe nem para onde se dirige. Por alguns segundos já não sabe nem o seu nome, a idade, a profissão... mas sabe bem o nome dele, a idade, e a profissão. Se reencontraram, era fato. E tão claramente adorável quanto profundamente atordoante. No entanto, outra vez surpreendentemente lúcida para o que era de maior interesse, respirou e sinalizou com naturalidade que encostassem seus carros na primeira parada à frente, logo à direita onde encostam os taxis.
Ele fez sinal de positivo com o polegar, sorriu, e concluiu com delicadeza toda a manobra necessária. Foi prático, controlado, deu a seta e olhou o motorista do outro lado, que intuitivamente fez sua parte com muita classe, sem pensar, sem complicar.
Então lá podiam estar os dois, a essa hora, sol da tarde, e um diante do outro, em pé. Os dois carros para trás, tudo para trás, e só o que havia era a imagem forte à frente. De um caminho outro, trajeto outro, veículo, vontade, velocidade outra, antecipação outra, esquecimento, lembrança, expectativa, graça outra. E eles sem demora simplesmente aceleraram, já que faróis que se abrem pedem prontidão, presença de espírito e às vezes esperteza. Nesse momento nenhum dos dois se lembrou de respirar. Tocaram-se sufocados, os caminhos de dentro precisando de um sopro. Ela pensaria depois, em como explicar a teoria do fluxo vivo de ar, certamente. Teria de ensinar para finalmente aprender. Contudo, por hora, inflavam-se de falta de tudo. E rompiam dentro, com tudo.

sábado, 9 de junho de 2012

as vozes das pedras de cada coração




Saí da loja de celulares conferindo nas teclinhas do telefone se a empresa tinha de fato resolvido o problema da mudez do aparelho e da linha. Eu ainda teria de esperar dois dias até que o resultado da reclamação aparecesse. Olhei aquele corredor de shopping com desalento grande, pensando nesse episódio no meio da tarde cortando o dia. Dali para frente o tempo restante nem era muito aproveitável. Incomodada com a situação, não quis ser simplista colocando a culpa na atmosfera de agitação e consumismo excessivos ou no desgosto com o mundo da tecnologia, tantas vezes atrasando nossas vidas quando resolve apresentar enguiço. Não, o incômodo era mais sério. Sentia que nem deveria estar ali, então me mexi rápido.
No final do corredor havia uma loja bem diferente das outras, na grande maioria muito iluminadas e de colorido sem coerência. Nela não tinha vitrine, tudo simples demais. Resolvi abrir a porta.
Lá dentro a atmosfera era totalmente oposta a todo o cenário de antes, quase como se a cor do lugar impedisse o barulho de entrar. Entendi aquele silêncio como quietude, ensejo musical. O lugar, pequeno e aconchegante, estava banhado de uma frágil luz natural vindo da porta no fundo da sala, saída para um modesto jardim, pequeno quintal, como se eu não estivesse mais no meio do shopping.
Reparei em várias cristaleiras enfileiradas e então pensei estar dentro de um antiquário que vendia móveis. Ao me aproximar delas vi jóias de outros tempos em suas prateleiras. Eram belíssimas peças antigas, as mais deslumbrantes já vistas em toda minha vida de mulher admiradora de jóias. Um senhor surgiu do nada e perguntou se eu estava gostando. Correspondi à simpatia de seu tom e disse estar encantada com tudo.
Em cada cristaleira um tipo de jóia. A primeira com anéis, outra só pulseiras, várias de colares. Então o melhor veio. Aquele senhor abriu para mim as portas de uma coisa indescritível e mágica. Tudo isso colocando em minhas mãos o primeiro anel e explicando como agir com ele. O homem apontou a portinha do quintal, a saída para os raios amarelando as paredes.
– Coloque a pedra do anel no sol, e ela vai lhe revelar segredos, pensamentos, sussurros, de quem usou essa jóia um dia.
Por algum motivo, talvez o tom assertivo e simples de quem não fala nada de mais, fui ao sol direto, sem questionar.
Alguns segundos na luz, a pedra brilhando, e então chegou o momento. Levei o anel pertinho do ouvido e pude ouvir claramente uma voz feminina falando baixinho, de fato sussurrando, coisas semelhantes a pensamentos numa instigante sequência de frases e palavras soltas, restinhos de uma declaração muito íntima.
“... Eu olhava aquela parede, lembrava cada gesto seu daquele dia, a mão descuidada derrubando o vaso e manchando o tecido, meu amor... nunca troquei o tecido...”
O homem apontou outra vitrine, e fui me servir de novo. Voltei ao sol.
“... Outro dia ele até olhou com outra expressão... vou falar tudo o que sinto, na próxima vez... juro que vou...”
No anel de safira, “... Meu Deus, perdão, sou tão pequena e fraca... agora vejo, devo ir... ah, não permita mais sofrimento...” , no colar de rubis, “... Adelaide, minha filha, está tocando a sua música... como faço agora com essa ausência?...”
Em uma pulseira de granadas aparecia alguém recitando um poema baixinho, “... Vou me cobrir para todo o sempre com o manto de lã tecido para mim com o seu amor daquele tempo...”, e dali em diante, era impossível dizer qualquer coisa ao senhor que apresentava as peças sabendo perfeitamente o resultado daquilo tudo em mim. Fiz só um gesto, pedindo para escolher eu mesma as pedras.
“... Amanda, adoro quando você me chama Amanda... só você, Antonio, diz meu nome do meio... “
“ ... Ei, você sabe bem. Nunca, nunca, nunca te esqueci...”
“ ... Não, eu nunca iria embora sem você, querido... você é quem foi...”
Fiquei enlouquecida com tanta revelação, não sabia nada de pedras guardando nossos segredos, gravando vozes, mesmo se fosse em pensamento. Acabei ouvindo música em colares, e de um topázio imperial saía o som miúdo de um piano tocando ao longe, certamente lembrança da pessoa.
Meu coração não se aquietava, eu obviamente tinha de escolher entre as jóias, levar comigo a mais tocante. O senhor saiu de perto, como quem já tivesse cumprido a missão de me tirar deste mundo. Agora já estava feito, ele sabia, e eu a sós com o universo de discretos cochichos de gente tão distante.
Aquele acontecimento da tarde cortada de forma a não dar mais espaço a novidades, foi a oportunidade de ruptura na repetição estéril de minhas recentes e frustrantes convicções em torno da incomunicabilidade, dolorosa limitação neste mundo de linguagens pelas quais passeio e que parecem sempre insuficientemente promissoras. Nas minhas horas de trabalho solitário, paixão de um ofício, submersa em eternas dúvidas sobre quem se interessaria pelas palavras surgidas no jorro misterioso, jorro das pontas dos dedos e do fundo de uma mente ambiciosa por poder pacificar um só coração que seja, jamais suspeitaria dessa fonte de suprimentos para a imaginação. O desencontro que a tecnologia avançada apresentara a partir de um aparelho falho, seria a grande propulsão para a visão da comunicação em abrangência nunca antes ambicionada por mim. Tão simples era, tão distante de sonhar. Eu acabara de varar dimensões, furar momentos mínimos em suas profundidades deslocadas da linearidade com que contamos o tempo e o vemos passar. Nada era linear no espírito daquele lugar sem cabimento e o tempo era de grande inverossimilhança. Tudo pode pular para frente e para trás, um segundo mirado verticalmente, cada centésimo dele espichado na altura e largura de horas de conversas importantes ou efêmeras, mas que ali estavam gravadas irremediavelmente porque alguém quis, um dia, nunca se esquecer. Eu proporcionava àqueles sussurros de segredos, particularidades ditas em tão privada intimidade, pensamentos encobertos por temores e obrigatórias dissimulações, a bênção de serem sabidas tanto tempo depois, ainda que só por mim. Nesse caso, dizer que eu acabara de ganhar o dia seria reduzir tudo ao mínimo possível. Eu ganhara a preciosidade de ser imprescindível, perpetuando e ampliando os horizontes do que ouvia, dando à luz, literalmente no sol daquele quintal, desejos urgentes declarados em total ardor, gritos sufocados em almas flamejantes caladas logo em seguida, como em constrita oração. Ouvi tudo e sabia que essas jóias enriqueciam o repertório de memórias, como colecionei em toda a minha vida de observadora atenta, todo o tempo na espreita do secreto que foge pelo canto dos olhos e das entrelinhas das pessoas com quem vou ter. Eu agora era a ponte entre esses corações marcados em pulso e vigor total de outros tempos, e o momento presente de ouvidos que também pulsam. Pensei em meus pendentes, anéis, pedra de qualquer adorno, no que teriam a dizer. Depois ri, porque graças a Deus sei que terão sim, momentos de calor e verdade e de segredos bonitos. Eu vivo.
Comprei dois anéis, um bem simples, só porque tocava música conhecida e querida, e outro que deixava ouvir a declaração de amor de alguém corajosa e determinada.
Ao pagar pelas aquisições, ainda olhei com volúpia a pulseira falando embriagada estranhas descrições do mar. Ela era linda. Mas me contive e resolvi que muitas voltas àquela loja seriam necessárias. Agradeci por tudo ao senhor habilidoso, sem demora já aprontando os dois pacotinhos.
- Vou voltar, com certeza, quero passar mais tardes no meio disso para o que nem tenho palavras. Ainda não sei se acredito...
Ele sorriu, e lançou o olhar por onde não escapavam e sim explodiam milhares de significados, respondendo:
- Claro. Volte sim, volte logo.
No momento em que eu já me virava o vi apontando uma cristaleira separada das outras, e fui detida nos meus passos:
- Você ainda nem ouviu os brincos.