modular é necessário







sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Patricia Maês: Refugiados

Patricia Maês: Refugiados
Música de Lô Borges e Murilo Antunes.
Participação de Flávio Venturini, Tavinho Moura, Toninho Horta e Patricia Maês.

Refugiados


Música de Lô Borges e Murilo Antunes.
Participação de Flavio Venturini, Tavinho Moura, Toninho Horta e Patricia Maês.


https://www.youtube.com/watch?v=VAMCfdh91Aw



segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

retrato




Viu aquela aquarela e o dia já estava mudado. Tudo aconteceu enquanto caminhava para o trabalho, rotina no consultório dentário, o branco das paredes e a limpeza que de tudo emana. O consultório é muito elegante, sóbrio e limpo de objetos, mas no caminho aconteceu a explosão do vermelho assustador como um assalto com arma e tudo. Como pode ser isso, a visão de uma obra de arte alterar o estado de humor? Ele não tinha noção até esta manhã. Mas neste dia tudo mudou, porque logo se pôs a ponderar.

É que havia sujeira na imagem. O vermelho provocante, escancarado e assumido daquela forma esparramada no papel, era cortado pelo borrão preto totalmente sem escrúpulos, a cor colocada ali para indicar invasão, descarada apropriação do espaço que já não bastava estar ocupado pela força vermelha de antes, ainda assim era passível de ser invadido por outra explosão.

As artes visuais nunca foram parte do cotidiano, não costumava apreciar muito esse tipo de linguagem. Tanto em casa quanto no trabalho, poucos quadrinhos enfeitavam as paredes claríssimas, e ele mesmo era tímido para admitir agora, estar integralmente fisgado por esse vendaval de sensações vindas de um objeto ostensivamente iluminado, inusitado.

Tão de repente, a imagem o fez ter sensações de desalinho, não exatamente mal estar, mas o sentimento de quem repentinamente se viu perdido por motivo sem precedentes. Era prazer e era diferente. Alimentá-lo ficando parado ali era quase como ser outra pessoa. O vermelho do jorro, o preto da ocupação, da chegada sem aviso, sem pedir aprovação. O escuro se fazia existir sem temores na aquarela, e ele inerte na frente da vitrine da galeria. Não podia dar mais nem um passo.

Ficou pensando. Seria o caso de entrar? Mas o que lhe esperava lá dentro poderia detê-lo ainda mais, perigoso arriscar. De qualquer forma sabia agora necessitar ter a obra por perto, tanto que temeu não poder pagar por ela. Sobrava a decisão de entrar e obter a informação. Dureza admitir-se virando refém da imagem e daquela combinação de cores. Um quadro, quem diria? Ele sequer identificava ainda a coisa como aquarela. Depois reparou tudo ser diluído, a despeito da força, o que o fascinou ainda mais pela aparente incongruência entre essas duas naturezas. Água, e no entanto a marca indelével, como o desejo, e no entanto as consequências das escolhas. Estava capturado. A vida passava a depender de adquirir o objeto, não havia nenhuma hipótese de isso não vir a acontecer.

Até que teve coragem e entrou na galeria. Foi bem recebido, viu outras belas obras sendo apresentadas com explicações, palavras às quais não prestava muita atenção, tão encantado e exposto a essa faceta de si mesmo, ainda desconhecida.

Tornara-se consumidor de obras de arte. Ganho, grandeza brotando no ser de rotina nos brancos e nas serenas interferências dos enfeites – agora chamaria assim – adornando até hoje todo o entorno.

A moça da galeria perguntou o que o atraía especificamente naquela obra em vermelho e preto, e ele se viu tendo de organizar as surpresas para verbalizar explicação que fizesse sentido.

- Não sei - disse de pronto.

Ela olhou intrigada e ele continuou:

- Acho que sou borrado e exposto quando vivo, mas nunca havia me dado conta.

Surpreendeu-se falando bonito, estava imbuído de arte como nunca. Gastou todo o dinheiro disponível, estourou os limites do cartão de crédito, mas continuou feliz no caminho até o velho branco, o pálido consultório em que consertava dentes, também todos brancos. Caminhou feliz e com o quadro bem embrulhado, apertado contra o peito, porque não quis que o entregassem. Fez questão de levar com a força dos próprios braços, esse que é o seu mais fiel e mais belo retrato. 

Patricia Maês: André Jolivet e eu

Patricia Maês: André Jolivet e eu: Gosto tanto desse compositor que ele é mencionado em um conto do meu livro "O céu é meu", bem confessional, falando da marca...

André Jolivet e eu









Gosto tanto desse compositor que ele é mencionado em um conto do meu livro "O céu é meu", bem confessional, falando da marca e presença da música em tudo o que faço e farei sempre. Para quem quiser esse livro, ele é de 2013 mas ainda está disponível. É só encomendar nas grandes livrarias. E aí está Jolivet, para que me entendam quando falo de minha grande paixão.






quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O diário possível de Francesca Woodman



É porque é maravilhoso e muito perigoso. Nossa condição é de que, quando somos muito livres, somos aviltantes, e sinto uma grande reação dos outros em relação à parte da minha produção feita em cima de sensações de grande liberdade. O salto no ar, o gesto mais agressivo ou mesmo a imagem de um ser esquivo, desperta certa estranheza. Então, o que acontece? Os críticos não têm o que dizer e se escondem atrás de uma verborragia sobre meus recursos técnicos. Como falam bem desses recursos, não reclamo.

E quando retrato os tais perigos que persigo, os medos que os seres na nossa condição vulnerável sempre, incondicionalmente, têm, falam que sou um espírito perturbado. E por que uma mulher narrando ou definindo o que é ser mulher desperta desconfiança ou pouca credibilidade? E quem se compromete a confrontar isso?

Ah.. é mais fácil para muitas artistas, continuar fingindo que não estão percebendo nada. E é fácil também se achar fazendo alguma coisa diferente e até libertária só porque se coloca a imagem da mulher em primeiro plano fazendo o que realmente uma mulher gosta de fazer... ah... mas como que isso pode bastar? A questão é outra. É a transmissão da sensação. E isso também explica minha obsessão pelo tema da instabilidade, o percurso do gesto, o movimento.

Seguramente. Eu sei o que estou dizendo. O problema de não admitir a estagnação na imagem, vem de meus impulsos sexuais que são todos da ordem de uma impregnação da representação do feminino em suas esferas mais profundas, perpassando por todas as eras e domínio em excelência das infinitas linguagens e movimentos dentro da arte. Não concebo meus instintos mais primitivos sem a lapidação de um sucesso no conhecimento dessas linguagens. Eu vivo com arte até para dormir, e quando morrer será um acontecimento dessa mesma natureza.

Da ordem do sexo vem tudo o mais... partindo do princípio de que todos nós estamos enclausurados nessas vitrines abjetas onde já nascemos, ah, todos tão coitados que vêm ao mundo com um destino bem arquitetado. Do rompimento da teia das formas pré moldadas parte toda a noção que teremos sobre o nosso infinito possível quanto à capacidade de  experimentações com essa que é a sensação mais nobre a nós permitida, a sensação de queda brusca no presente insuspeitável e que quando mais dilacerante, mais revela sobre os medos já superados durante o caminho já percorrido.




sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A casa



O último carregador da enorme mudança saiu e ela fechou a porta olhando para todas as caixas empilhadas, sem preguiça. Uma retomada esperada por muito tempo, e então desejou essa sensação de novidade e de nada pronto. O estado de tudo ainda por fazer era de tal forma prazeroso que nem um brinde com a melhor das bebidas desse mundo estaria à altura. O melhor para celebrar era olhar a bagunça, estar certa de que nada seria como antes dali para frente. E ela olhou por horas, cuidou para que isso pudesse de fato ser vivido, a demora na sensação. Arrumou bem no meio da sala o tapetinho com duas almofadas para ali se instalar, esticada no meio das pilhas de objetos encaixotados. As caixas não foram marcadas e ela não fazia a menor ideia de onde havia pratos, discos, documentos, lâmpadas. Lâmpadas... a casa ainda estava sem nenhuma. Procuraria um abajur assim que começasse a escurecer, ainda não era hora. Ficou por ali sem comer, sem beber, só olhando os cantos das paredes, a ideia de que tudo ficaria aconchegante.

Vida sem mudanças se torna não vida. Deixar para trás é necessário. Renascimento, sem renascimento não somos muita coisa. É de novas empreitadas que nos fazemos inteiros, de novos intentos nos fazemos completos, pois não existe descoberta na estagnação. É preciso ruptura para que possamos entender o que era antes de acontecer o agora. E ele não se faz sem violência. Romper, corromper, deixar levar, abandonar, afastar, é diferente de esquecer. A vida é proporcional à quantidade de não esquecimentos que trazemos, e afirmar isso é grave demais. Sim, porque tanto nos apegamos à ideia de guardar recordações, tanto achamos valoroso o cultivo da memória, como respeito às nossas conquistas pregressas e aos nossos antepassados, que não lembramos às vezes da legitimidade do esquecer.  E ao perdermos essa legitimidade, deixamos escapar que o lembrar e não ligar, é que é o pulo do gato. Parar de dar certas importâncias. Difícil viver assim nessa bênção, mas pode ser uma lição da nova ruptura. Caso para pensar hoje, em meio à bagunça, em meio às pilhas de coisas que representam o conquistado, o adquirido, o que se seguiu às apreensões interiores acumuladas por tanto tempo em sua vida ainda de jovem. Nada do que está fora deixa de corresponder ao que está dentro. Essa mudança de casa era uma mudança de casca, porque o corpo crescia e crescia a vontade de alguma coisa que só na arrumação dos objetos ficaria mais clara para ela. De que natureza afinal é toda essa movimentação, que foi assim tão necessária a transferência de espaço externo?

Havia planos, coisas de trabalho, sonhos de um amor diferente e profundo certamente, mas na nova organização dos seus pertences, o inusitado saltaria aos olhos. Talvez por ver que deixara de precisar de certos pertences, e por perceber, ao abrir uma dessas caixas, que nem se lembraria de determinado item se ele não se apresentasse assim de surpresa. Pode ser que demorasse a achar alguma coisa, e isso na hora lhe faria imensa falta, e então teria medo, medo de ter perdido objetos imprescindíveis. Agora o que se apresentasse como imprescindível seria de qualquer forma outra bênção. Ela estaria de novo diante de novidade. Tudo novo, tudo transformado, e qual a razão?

Essa mudança de espaço significa concretização de plano antigo, tanto quanto julga antigo ter nascido e ter ganho seu nome. Havia a coisa planejada desde sempre, e isso era ela mesma, a “pessoa desde sempre”. Ela se encontra tanto consigo própria sentada no tapete e olhando o nada pronto - como gosta de chamar sua casa de recém chegada - que essa não é uma mudança qualquer.

Mesmo tendo vivido outras transições, sabia que chegaria o dia em que a “transferência” adquiriria esse caráter. Era a diferença. O querido é muito além do necessário, ou do que se dá simplesmente porque a vida é assim. O querido vem às vezes com certo atraso no nosso julgamento, mas isso apenas enquanto ainda não aconteceu. Porque na hora em que finalmente o acontecimento vem, entendemos que o momento propício nunca tardou, não falhou. A vida tem justiças além das nossas mazelas vividas a duras penas e das quais poucos, tão poucos, escapam, e assim mesmo por pura distração. Penas são democráticas, vêm para todos, mesmo com disfarces. Mas os que não as conhecem não contam como estatística, não são parcela representativa de coisa alguma nesta vida.

Vamos falar da justiça, e ela pensa nessa palavra com gosto, porque hoje está justiçada, e para o bem. A bondade lhe salta aos olhos neste dia especial. O dia de chegada, que também foi de partida, hora em que ela foi. E poderia ficar parada a semana inteira, sem comer e beber, nem se mover, ou nada, tamanha é a satisfação. Justiça, prazer, realização, essas são as palavras que descrevem o começo no lugar novo, e ela vai chamá-lo de casa.

Nessas circunstâncias, chamar um abrigo de casa não é lugar comum. As outras casas que teve até hoje não tinham o valor de invólucro de pessoa se fazendo. Ela se faz nesses tempos, mais do que renasce, ou do que se redescobre. Há outra ela, bem melhorada e que pediu de presente. Solicitou a si própria que viesse de novo, reapresentação em nova edição, encadernação bem mais de luxo.

A palavra “tão” aparece a todo momento. Tudo é “tão” que é tão fácil ficar mais feliz. Tão novo, tão cedo, solar, sem mácula, tão harmonioso. E ela é tão ela, de novo e finalmente. Antes e em outras mudanças comemorou, bebeu, e havia a música chave que tinha de ser a primeira a tocar naquele ambiente recém inaugurado. Era quase superstição, quando achava que reafirmar seu amor por determinada canção reavivava sua identidade. Se fosse como antes, a esta altura estaria dançando com o copo de vinho nas mãos, sentindo-se superadora de uma etapa a mais. Mudar de casa tem normalmente esse espírito. No entanto dessa vez é diferente também nesse detalhe. Há um aspecto da celebração que prescinde de qualquer gesto, qualquer coisa que, se acontecesse, até profanaria a absorção do evento.

Estar. Não à toa ali será a sala de estar. Nunca um lugar a fez tão estar. Estar tão. Ela hoje é tão. Hoje é a plenitude a mais da plenitude, um além das coisas que são, e das que nunca nem foram sonhadas. Escolher conta mais que tudo. E um dia escolhemos.

Muitas vezes sem perceber fazemos nossa decisão começar a valer, e isso não está na mera determinação, como dizem os otimistas, daqueles quânticos que acham que falar é vaticinar. Nem sempre. As decisões que passam a valer e que vão de repente se apresentar como fato, como o pronto, são aquelas que dependem de uma explosão. Essa explosão é assunto para teses, é matéria de muitos anos de sistematização de muitos conceitos para que seja explicável. Mas ela sabe no cerne, no espírito, do que se trata, uma vez que foi com ela que o fato se deu. O que faz dessa mudança a coisa mais importante, é que o deslocamento nasceu de um desejo de vida que só pode começar agora, mas que foi fruto da tal explosão lá atrás, um dia. O desejo do caminho novo se abrindo nasceu em um momento de tal pureza de sonho e sentimento, que uma estrela disse sim, uma constelação se aliviou e um sol expandiu tanto até depois se contrair como é comum nesses fenômenos.

No dia em que ela descobriu determinada motivação em sua vida - sim, por acaso uma pessoa dessas que quando se apresentam diante de nossos olhos nos fazem quase flutuar pela revelação de beleza inigualável - houve como por mágica uma dessas explosões. Sentimento em plenitude, tudo desligado de qualquer pensamento ou ato que maculasse a coisa em si, a apreciação e a absorção daquilo. E a explosão foi essa culminação do brilho da mente e do coração em perfeita sintonia, concordando que o observado, despertando ideia nova de simplicidade e completude, era a perfeição em estado mais desperto e esperto.

Então se deparou com o belo, e isso nunca mais saiu dos seus ideais. Sintonizou nele e seguiu pelos anos afora. Mesmo quando achava que se esquecia da beleza, aquilo estava lá. Era coisa consumada, a explosão já havia se dado, e nada poderia ser feito além de aceitar. Outros teriam desejado o mesmo? É certíssimo que sim, mas a explosão se deu somente com ela e isso era fato. Estava agora olhando o não pronto com a delícia de quem tem o pronto dentro, desde sempre. E sabe de uma coisa, sabe que se foi capaz dessa tamanha pureza de intenções na direção de coisa tão linda, é porque é uma felizarda digna do amor.

Há outra pessoa na sala ao lado olhando o não pronto também. E a mudança dessa vez foi para ficar com ele. O nascido era um porvir de superações e presentes anunciados pelo céu, que para tanto, é chegada a hora. Viver tinha muito de justiça, pensa e repensa. Era só isso, bem simples, e a coisa que sairia de dentro das caixas, entraria nelas, transborda das janelas e vaza por debaixo das portas ali é a explosão ainda em seu eco infinito e nunca arrefecido, pelo contrário, só intensificado no tempo.

Ela vai viver daqui para frente das não dúvidas, dos não temores da consciência, da não falta de qualquer natureza. Nasceu outra coisa nesta mesma vida, diante de seus olhos, e isso se desenhara desde sempre dentro dos olhos, do seu céu particular.

A pessoa que também olha com singeleza o não pronto na sala ao lado, subitamente faz um barulho. O som é por alguma razão óbvia, um chamado. Tudo dele é um chamado. Ela vê que o companheiro fez seu cantinho de contemplação do mesmo jeito. Para eles essa é a casa de um sem fim de possibilidades, e assim mais uma explosão fecunda brota de outra sincera pureza: a gratidão. Por tudo isso, essa é a casa do mais que pronto, morada do tão amor.

De repente ele surge a seu lado, lhe entregando uma lâmpada sem dizer nada. Ela pega a lâmpada e enrosca no fio pendente do teto, reparando que é final de tarde. Nessa mesma hora conseguiu ver que assim, de ação e claridade os seus dias seguiriam, para sempre.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

encaixe


Elenice só tinha um pensamento, uma espécie de fé de que o sofrimento passaria. Perder um irmão para o tráfico do jeito que perdeu, um garoto ainda, morrendo com cinco balas, três na cabeça. Aquela mesma cabeça que planejava outra vida, que falava ingenuamente sobre ser professor de capoeira, como seu ídolo, o vizinho ao lado que chegou a um grau de excelência tão grande na arte, atraindo alunos de toda parte da cidade. A comunidade era constantemente visitada até por gente rica, entrando em fila para conseguir uma vaga na aula do Mestre. E o garoto então queria ser o futuro Mestre, e por isso treinava, treinava.

A comunidade foi pacificada há pouco, mas há um grupo querendo retomar seu lugar de vigilante das vidas ali, e era para eles que o garoto trabalhava. Seu nome de batismo, José, mudou para Pedrada, por ordem do seu superior. O apelido se baseava num acontecimento para José sem importância, uma pedrada que deu em outro garoto no meio de uma briga e que calou o adversário na hora. A fama estava feita. E assim ele recebeu a alcunha.

A capoeira estava ficando para trás. Envolvido com tantos afazeres, tantas ordens, tinha pouco tempo para pensar no mestre, no trabalho, mas continuava dizendo em casa de seu futuro como instrutor de muita gente. E ele seria respeitado e nunca o chamariam de Pedrada.

Agora tudo era passado. Elenice tinha de se virar sem as palavras de esperança do menino que quanto mais se encrencava, menos sonhava. Vida nova para ela, sem sonho, mas com a dureza de quem tem perseverança e jura que toda vez que for chorar, vai chorar sem abaixar a cabeça, vai chorar erguida, firme, e seguir em frente.

Então que o ódio passe, ela implora. E encontrar na paz a saída, acomodando seu peito de mulher corajosa para a conquista sem sangue, e sim aquela que só depende da vontade e da capacidade de levantar a cabeça na hora de verter as lágrimas. Mas Deus está vendo.

No emprego novo ela não fala do vivido recentemente. Os colegas só sabem dela, ser muito calada e séria, muito reservada e misteriosa, pois não ri à toa na hora do descanso, não quer nada.

Antes de dormir tenta pacificar a alma, faz compressas de gelo na cabeça, porque é a hora de lembrar do irmão e do acontecido. O crime bem na sua frente, os tiros respingando sangue e um pedaço de cérebro bem na sua cara. Sim, ela estava presente e foi numa invasão à sua casa que pegaram o menino. Ele tinha aprontado das boas, mas quem pode dizer que aquilo era justo?

O gelo na testa, a música que ganhou de um parente distante, dizendo ser bom para acalmar os pensamentos. Era mesmo. Não sabia de onde vinha aquela música, mas era tudo o que o irmão mais detestava, calma demais, de melodia cujas frases não terminavam nunca. Ela acompanhava o desenho das notas, tinha sensibilidade para perceber o que acontecia, e entendeu o conselho do parente.

Pela manhã tomava seu café com uma presteza que dava a impressão de ser aflição e não pressa. Mas ela o fazia orando, pedindo, e isso acalmava de novo. Estava conseguindo aplacar seu sentimento de revanche, seu sentimento de indignação. Com sorte, até o final daquele ano seria de novo uma pessoa normal, e dormiria facilmente, acordaria ouvindo mais daquele tipo de música que o irmão tanto detestava e seria a própria calmaria.

Mas e o corpo? Como reagia o corpo depois de ver destroços da carne da sua carne? Ela se tornara mais troncuda, sem se exercitar. Uma coisa curiosa isso, mas seus músculos saltavam dos ossos. Comia um pouco mais e com voracidade, agora tinha a força e isso também parecia uma reação à alguma violência. Ela se fortificava do jeito que podia, seu corpo fazia tudo sozinho, crescia sem ser como resposta a um estímulo apropriado, um desejo seguido do trabalho para crescer. Ela acordava mais masculinizada a cada dia, era uma Elenice com quem ninguém se meteria a besta.

O pessoal da comunidade respeitava a mulher de fibra que era ela. Nem gritou no dia do acontecido. E grito de mulher era o que mais se ouvia naquele lugar. Cada adolescente morto por causa da polícia ou do próprio tráfico rendia dias e mais dias de gritos de mulheres desesperadas. Mães e tias, irmãs e esposas, todas gritavam, se descabelavam, era o jeito certo de se manifestar. Ou não era? Para ela, jamais. Não dera um pio. Gritou para dentro e isso foi o estopim para que seu corpo reagisse se fortalecendo junto com seu pensamento de resistência. As lágrimas ainda corriam em seu rosto voltado para cima, o tórax firme, nada de se curvar.

O tempo passa, “talvez no final do ano”, pensa. “Ainda me livro dessa sensação”. Era raiva? Era o quê? Ninguém poderia dizer, simplesmente porque ninguém podia fazer ideia de nada. Ela calada, resignada, levando a vida normalmente.

Mas houve uma noite em que a música calma parou. A mulher desligou o som e jogou para longe o gelo. Apagou a luz e virou-se para o lado, cansada também daquele ritual. Sentia revirar no peito uma força diferente, o coração mais acelerado, a cama esquentando e pedindo para que ela se levantasse. Virou-se novamente, tentou se acomodar. Nas pernas um calor subia devagar, os músculos enrijeciam e sofriam de uns pequenos espasmos como se fosse a reação a um longo dia de exercícios exaustivos. Mas seu dia havia sido aquele da mornidão de sempre. Trabalho e comida, silêncio e olhares sérios para tudo e todos.

No seu estômago tudo se revirava. O corpo pedia remédios, estava entrando numa espécie de colapso indescritível nunca antes experimentado. O que poderia tomar para melhorar? Aquilo não era normal. Pensou em rezar, mas estava tão exasperada que sentiu profundo desprezo também pela oração de todos os dias. “Quanta porcaria”, pensou, “quero-que-vá-tudo-para-o-inferno”, disse articulando bem as palavras. Agarrou-se na cabeceira da cama e levantou-se de supetão. Um movimento brusco e estava em pé, em pé como se forçara a ficar desde o acontecido. Agora, com tudo revirando por dentro, ela queria dizer seu nome, Elenice, e repetir Elenice cada vez mais, pois isso dava prazer e aliviava um pouco os sintomas do desespero. A repetição fazia algum sentido no meio daquele turbilhão. Ela teve de se apoiar de novo, estava tonta.

Como se entorpecida, dizia: Elenice, Elenice... e horas se passaram com esse mantra em diferentes intensidades, enquanto cruzava o quarto e a sala se segurando nos móveis e sentindo sua náusea e suas palpitações também mudarem de intensidade, conforme seu nome era dito, como um chamado para a realidade.

Nada mais de música ou gelo para esfriar a cabeça, nada disso. Ela queria explodir feito o irmão, deixar as queixas nunca feitas encontrarem seu caminho de expressão.

Bebeu um copo de água gelada em uma golada só. Engasgou e riu ao mesmo tempo, babando de embriaguez. Esperou circulando, até que o dia chegasse. Esperou porque a sensação que lhe tomara por inteiro era de certa forma uma lição da qual andava precisando há tempos. Estava tudo errado em sua vida e isso agora já era claríssimo.

E eis que clareou tudo mesmo e ela nem se vestiu. Tomou mais água e comeu um pão com a fúria que era comum. Mas seu estômago não melhorava. Algo por dentro subia e descia vertiginosamente como se um corpo estranho tivesse se apossado dela. Os músculos das pernas em prontidão, os músculos dos braços, rijos, o coração dando pulos, sim, tudo apontava a um só caminho, a rua. E ela saiu como estava, os cabelos para cima como quem vira um fantasma, mas o fantasma nunca seria mais assustador do que ela mesma. Foi até a esquina e lá encontrou o que procurava. Um dito “homem de bem”.

Empurrou o homem pelo peito e o derrubou facilmente, pois seu gesto veio tão inesperado e não havia defesa possível. O homem caiu como um corpo morto antes mesmo do próximo golpe. Um soco de mão fechada bem no centro de seu rosto, segurando em seguida seus cabelos e batendo com a cabeça da vítima no chão, várias vezes, com a força de um homem cem vezes mais forte que qualquer um ali presente. As pessoas ao redor não podiam fazer nada, estarrecidas e se perguntando o que aquele homem teria feito.

Só ela sabia o que ele teria feito. E tudo ou nada dava na mesma, o que importava era que “homens de bem” como ele, para ela não significavam nada diante da realidade da vida que não dá chances para ninguém que não tenha nascido de outros “homens de bem”. Seu irmão nunca poderia ser o mestre que sonhara, sua vida era guiada pelo mestre do tráfico porque ele não tinha como escapar da sina imposta em nome do bem estar dos filhos dos homens de bem, que precisavam que alguém morresse para que pudessem praticar seus pequenos delitos sem jamais alguém se importar. Aquele homem também era cliente de seu irmão, e o que fazia àquela hora, ali, enfiado no morro? Ela nunca se sentiu com tanta razão.

Continuou batendo com a cabeça dele no chão tantas vezes, que seus olhos escureceram de um vermelho que não sabia de onde saía, e nem se era dela ou dele. Arranhou seu rosto com toda força e com unhas desconhecidas, em seguida cravando as garras nos olhos, o golpe que mais lhe deu satisfação. Enfiou seus dedos com vontade nos olhos do homem até arrancá-los com a força com que se arranca o coração de quem matou o seu coração. Ter os olhos daquele moribundo por entre os dedos era o prazer que a libertaria para sempre da necessidade do gelo esfriando seus pensamentos negros e quentes. Ela estava se libertando.

Finalmente, duas pessoas se manifestaram e ela foi agarrada e retirada de cima daquele homem, talvez morto, esparramado no chão. E ela não viu mais nada. Desmaiou e sentiu na queda o prazer da morte quando esta chega na hora de uma dor não controlável. Acordou muito tempo depois, no corredor do que parecia ser um hospital. Viu apenas que ninguém percebera seu despertar, e era bom mesmo. Enquanto ia caindo novamente no sono teve a plena certeza de que agora nunca mais seria calada e misteriosa. Não importava para onde a levariam, ou se o seu destino seria um cárcere qualquer. Sabia que a sua verdade de ser o que era, agora havia encontrado um lugar digno no mundo e que o respeito havia sido retomado. Ninguém a deixaria mais de estômago embrulhado. Ela finalmente passara dessa fase angustiante onde tudo o que vinha tinha de ser engolido sem fome. Viu que a fome verdadeira estava saciada, a fome de algo que antes o mundo não estava lhe proporcionando. Dormiu feliz e apaziguada. Nem queria saber se matou ou não o homem, se a sensação de ter seus olhos por entre os dedos era real ou uma alucinação. Só queria mesmo era aquele sono dos justos. Agora havia a Elenice do crime. Mulher única. Ninguém se igualava a ela assim como nada se igualava ao que já tinha visto nesta vida. Sentiu a paz. Sem música ou gelo, sem rezar e sem pedir nada. Ela já não precisava de nada. Só precisava deixar a vida passar.