modular é necessário







domingo, 17 de fevereiro de 2013

trecho de "pianíssimo"


Eu tinha dezenove anos e me lembro claramente. Na ocasião os ensaios começaram a ganhar aos poucos um caráter diferente, porque grande parte do repertório pedia surdina nos instrumentos, e muito estudo dos instrumentistas. Havia o desafio de tocar pianíssimo sem perder a qualidade, a clareza do som. Costumo dizer que todo o aprendizado na música usei em outras esferas da vida, mas essa questão de aprimorar a capacidade de tocar piano com um som limpíssimo me fez criar muitos paralelos com outras atividades e é matéria de longas discussões com meus amigos músicos até hoje. O pianíssimo perfeito veio impor outras necessidades nos meus dias, como pensar certas coisas da vida acontecendo da maneira certa, justamente dependendo da capacidade de sutileza, o saber pegar e trabalhar o miúdo até deixá-lo grandioso em sua excelência.
 
 

Maya Deren


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

trecho de "silenciosa"


 
Tentou se instalar dentro da banheira seca para tomar o chá, imaginou no fim da tarde os pingos companheiros e cantarolou uma música apreciando o eco que ali fazia. Depois viu que não precisava de música.
Tentou de tudo, ficou nua e olhou seu corpo, imaginou que era bonita, forçou ao máximo até chegar em um prazer mísero que a fizesse lembrar da entrega ao mundo impenetrável sobre o qual ninguém jamais saberia e que nunca precisaria dividir. O mergulho era, portanto, como a liberdade, era como ter segredos a mais, como criar, como se inventar. Sem o prazer das águas ela estava enredada no universo das repetições. Tinha de ficar perambulando, o dia sem quebras de acontecimentos relevantes dividindo o tempo, dando sentido às horas de sobra ao redor.
 
trecho de "silenciosa", de O CÉU É MEU
 
                                                                                     Katia Chausheva

 

do bem


       Seu reduto misterioso poderia ser uma igreja como essas de Minas, porém destacada da cidade, enxertada no meio de um nada além de montanhas cercando um vale de difícil acesso. Seria um forte com paredes erigidas em nome da incidência e movimento do sol nas tardes. Longas e amarelas tardes. Arquitetura em função da luz, relevos colocados estrategicamente como alvos certos dos disparos no céu enviesado como só em tal latitude e longitude. E teria até água correndo no chão, os canais do som que é como uma fala ancestral diluída, um contar maleável abrigando múltiplos entendimentos e a natureza do infiltrado. A água fluiria por entre os corredores e salões com trabalhos incrustados em arcos, abóbodas de flores esculpidas, mosaicos e afrescos pelos muros, e um pátio com uma bica feita de bichos. Talvez como em Alhambra, que tem o pátio com o chafariz dos leões de pedra. Mas o pátio dela era aqui mesmo no meio de Minas, e então brincava com César que o chafariz seria rodeado de onças suçuaranas e lobos guarás. O lugar sempre foi todo para a luz, mas ela insistia em imaginar também o pátio nas sombras, os lobos na noite. O escuro e o líquido, o profundo inconsciente e o emocional revisitados, o passado escrito tendo a chance de soar pelo ar como música, sons contando tudo.
 
trecho de "a horda do bem", de O CÉU É MEU
 
 

retrato


Tão de repente, a imagem o fez ter sensações de desalinho, não exatamente mal estar, mas o sentimento de quem repentinamente se viu perdido por motivo sem precedentes. Era prazer e era diferente. Alimentá-lo ficando parado ali era quase como ser outra pessoa. O vermelho do jorro, o preto da ocupação, da chegada sem aviso, sem pedir aprovação. O escuro se fazia existir sem temores na aquarela, e ele inerte na frente da vitrine da galeria. Não podia dar mais nem um passo.
Ficou pensando. Seria o caso de entrar? Mas o que lhe esperava lá dentro poderia detê-lo ainda mais, perigoso arriscar. De qualquer forma sabia que agora necessitava ter a obra por perto, tanto que temeu não poder pagar por ela. Sobrava a decisão de entrar e obter a informação. Dureza admitir que virara refém da imagem, que precisaria admirar diariamente aquela combinação de cores. Um quadro, quem diria? Ele sequer identificava ainda a coisa como aquarela. Depois reparou que tudo era diluído, a despeito da força, o que o fascinou ainda mais pela aparente incongruência entre essas duas naturezas. Água, e no entanto a marca indelével, como o desejo, e no entanto as consequências das escolhas. Estava capturado. A vida passava a depender de adquirir o objeto, não havia nenhuma hipótese de isso não vir a acontecer.
 
trecho de "retrato", de O CÉU É MEU
 
 

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

para saber


Certo dia olhei interessada demais nos olhos de Catarina. Ela percebeu, parou, me encarou profundamente como se jogando uma isca. Era difícil não ser fisgada. Tive medo de ali mesmo acabar entendendo o que tanto ninguém poderia saber. O mistério ficou próximo demais, aquela dor rejeitada, e eu quis sumir naquela hora. Tinha fascinação pela moça, mas muito medo das perdas. Ainda era cedo para ver o escombro agarrando pelos flancos uma figura que para mim veio se apresentar como o oposto disso. Logo desviei o olhar e ela sentiu que nada poderia ser dito àquela criança. Então eu era como o nada, porque nem concebia conhecer o que até então havia permanecido indecifrável. Mas se havia alguém para quem ela diria sobre como via caber ela própria dentro do seu sentir, esse alguém era eu e isso ninguém precisava me dizer.

 
trecho de "para saber", de O CÉU É MEU
 
imagem - Devora Jacoby

o silêncio dela


Viver o silêncio em um mundo observado apenas pela janela ficou sendo a melhor opção. E ela encarou como trabalho, fez isso para sentir-se dona de um projeto de vida, coisa que justificaria a reclusão e a pouparia, sobretudo, de questionar o medo dos novos estímulos. Pensou nos artistas que escolhiam o isolamento como condição primeira para chegar em realização e dignidade. E ela era digna com toda a quietude, não ajudava em nada, mas não fazia mal a ninguém, não incomodava e nem divergia. Como isso era bem vindo. Estar no mundo da forma mais delicada, não pertencer a ele ostensivamente, querendo coisas, engendrando mudanças. Nunca mais, nada disso. Ela só queria dar paz e receber indiferença, aquela que nunca a cobraria de ter um pouco mais ou de parecer adequada.

 
 
trecho de "silenciosa", de O CÉU É MEU
 
house by Francesca Woodman - Providence, Rhode Island, 1976
 
 

Dorothy

 
Qualquer mulher que aspire a comportar-se como um homem,
é certo que carece de ambição.
 
Dorothy Parker

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Elizabeth

  
 
The greatest gift is the passion for reading. It is cheap, it consoles, it distracts, it excites, it gives you knowledge of the world and experience of a wide kind. It is a moral illumination.
 
 ELIZABETH HARDWICK
 
 

Doris


"Acho que muitos escritores invejam pintores porque gostamos de acreditar que é mais simples pintar uma imagem do que escrever um livro. Não é, claro! Mas é uma atividade muito atraente, tátil."

Doris Lessing, em entrevista a Hans Ulrich Obrist.

Imagem de SUNOL ALVAR

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

respiração


Há a calma e ela queria ensinar respiração. Ministrar cursos de prazer com o ar seria de nobreza absoluta. Um anúncio no jornal? Seus amigos não se interessavam pela ciência longamente sistematizada, compêndios escritos ao longo dos anos, enquanto sentia crescer a mudança, o apurar da técnica, ideias de descobertas a mais. E isso ia se desenvolvendo sem pretensão nos intervalos de qualquer atividade, anotações impulsivas nas agendas sempre à mão, aquilo que agregava mais valor ao dia e a fazia sorrir. Anotava tudo o que descobria sobre essa arte, às vezes pequenas mas significativas observações sobre como o corpo respondia a tudo. Agora ela aperta suas coxas deixando-as marcadas, inspira junto com o movimento dos dedos, em garra. Mas só a pele na pele não adianta. O movimento do ar entrando e saindo é que dá a ideia da temperatura do contato. Sim, como não acreditavam nela? Quanto prazer desperdiçado.
 
 
 
                  trecho de "conto com sentido" de O CÉU É MEU