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segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Crítica de Cássio Lignani sobre "O céu é meu"

melancolia e comedimento
Em O céu é meu, primeiro livro de contos de Patricia Maês, lançado neste ano pela editora CUBZAC, não há exageros. Nada está em demasia, e os contos são como receitas do inesperado, das quais o sabor deixado não revela seus elementos e provoca o leitor, abandonado em sua avidez por um pouco mais, sufocado por um prazer interrompido. Deixar-se tocar por cada um de seus contos é entregar-se ao vazio existencial e tratar de preenchê-lo pelo prazer dos sentidos, pela ruptura com um olhar naturalizado e por uma busca silenciosa e solitária por um significado.

Essa escrita comedida revela a autora não só como alguém que manipula bem a linguagem literária, mas também como uma artista que deixa entrever seu pensamento acerca da arte, em suas diversas linguagens. E por sua escrita suave e tão delicada, talvez seja possível imaginar como Patricia Maês, que tem formação musical e em artes cênicas, conduz seu processo criativo; da mesma maneira como a narradora do conto “Pianíssimo” imagina o paralelo que há entre a maneira com que um músico toca seu instrumento e sua forma de viver a vida.

À medida que a leitura avança pelos 15 contos do livro, percebe-se que a sensibilidade tem um papel fundamental para atingir certa clareza da vida. A educação estética eleva a alma, e o sublime é o meio para se atingir esse local elevado, do qual se torna possível observar a vida além da enevoada realidade cotidiana. Assim, não só em “Pianíssimo”, mas também no conto que dá nome ao livro, “O céu é meu”, e em “Retrato”, é possível encontrar a arte como espaço de liberdade, de transgressão, de cores, de fôlego, que oferece aos personagens uma chance de encontro, um caminho para o autoconhecimento, uma alternativa além da rotina pálida e pragmática.

Quando não há nenhuma menção evidente sobre a arte nas narrativas, outras experiências de efeitos semelhantes se infiltram na vida dos personagens. “Silenciosa” fala sobre a viuvez de uma mulher que, isolada e alheia ao mundo exterior a seu apartamento, recolhe-se no prazer – sensorial – de seus longos banhos. “Fragrância Liberdade” apresenta uma prisioneira que encontra no perfume sua “doçura morta”, a possibilidade de se manter sã, a liberdade que contrasta com sua prisão e o cuidado em um espaço de miséria. Em “As vozes das pedras de cada coração”, são as memórias e os segredos que vão romantizar o consumo e atrair a personagem a preencher o seu espaço vazio.

Existe uma coerência na abordagem dos contos, que parecem compor em silêncio esse lugar que compensa uma insatisfação – ainda que inconsciente. Apresentam-se também outros temas, como a infância, não só como nostalgia de um tempo de mistificação, a exemplo de “Um Navio”, mas também sua definição como tempo de liberdade e a possibilidade de revisitá-lo na música, como em “Onde mora a liberdade”, e a libertação do amor repressor dos pais, em “Quem matou quem”. O conto “Quem vive a trabalhar” trata do querer mais, da vida que se esvai no exercício cotidiano do nada, das distâncias que um é capaz de impor sobre sua memória e sobre seus próprios desejos.

Há ainda os encontros, a relação dos casais, as insatisfações veladas e a construção da cumplicidade que existe entre aqueles que de alguma maneira se amam ou se amaram, como em “A horda do bem” e “Só”. Em “Conto com sentido”, a personagem trabalha sua respiração e reflete sobre a vida serenamente em meio ao caos do trânsito e, embora demonstre todo seu autocontrole pelos exercícios de respiração, não impede que esse caos interfira em sua vida e lhe ofereça um reencontro inesperado, que sugere uma ruptura do comedimento.


Patricia Maês nos apresenta um mundo em tom melancólico, deslocado e comedido, produz o incômodo e constrói o silêncio, como se desejasse gritar.  Maria Rita Kehl, ao escrever sobre a melancolia no pensamento ocidental, rememora a relação aristotélica entre a criação e o estado de alma melancólico, que induz o artista a arriscar ao chegar ao abismo de ter sido e não ser mais, para tentar produzir um novo sentido, um novo ser[1]. João Castello, ao escrever sobre o tema tomando João Cabral como exemplo, define a melancolia como um vazio – no peito – construtivo, do qual escorre um “humor doloroso e inexplicável”, e conclui que, “se há falta, há poesia”[2]. Essa falta – melancólica – se manifesta no processo de Patricia Maês ao dar vida à sua criação. Com suavidade, a autora aos poucos toca esse mesmo vazio e o desejo de ser, fazendo escorrer sua poesia.

Esse novo ser transparece no conto “Para saber”, que nos apresenta a personagem Catarina, jovem viúva, cuja trágica vida é filtrada pelas memórias de infância da narradora. É também dessa maneira que percebemos o vazio no conto “A casa”, que aos poucos vai sendo preenchido e renovado, pois “deixar para trás é necessário”. “[...] É preciso ruptura para que possamos entender o que era o antes de acontecer o agora. E ele não se faz sem violência”, sentencia a narradora.

Os contos de “O céu é meu”, nesse sentido, oferecem um espaço para o leitor se aprofundar com sensibilidade. O resultado é um querer mais, uma insatisfação positiva – como alguém que estica o pescoço para melhor escutar uma nota, e assim, sem perceber, se desperta. Os sentidos são suspirados a cada palavra, a cada silêncio. Patricia Maês conduz seu texto como conta um segredo, oferecendo uma experiência, um encontro e um novo desejo de ser.





[1] Kehl, Maria Rita, Melancolia e criação. In: Freud, Sigmund. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
[2] Castello, João. Uma defesa da melancolia. Jornal Rascunho, março de 2013.

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