Viu aquela aquarela e o dia já estava mudado. Tudo aconteceu enquanto caminhava para o trabalho, rotina no consultório dentário, o branco das paredes e a limpeza que de tudo emana. O consultório é muito elegante, sóbrio e limpo de objetos, mas no caminho aconteceu a explosão do vermelho assustador como um assalto com arma e tudo. Como pode ser isso, a visão de uma obra de arte alterar o estado de humor? Ele não tinha noção até esta manhã. Mas neste dia tudo mudou, porque logo se pôs a ponderar.
É que havia sujeira na imagem. O
vermelho provocante, escancarado e assumido daquela forma esparramada no papel,
era cortado pelo borrão preto totalmente sem escrúpulos, a cor colocada ali
para indicar invasão, descarada apropriação do espaço que já não bastava estar
ocupado pela força vermelha de antes, ainda assim era passível de ser invadido
por outra explosão.
As artes visuais nunca foram parte do
cotidiano, não costumava apreciar muito esse tipo de linguagem. Tanto em casa
quanto no trabalho, poucos quadrinhos enfeitavam as paredes claríssimas, e ele
mesmo era tímido para admitir agora, estar integralmente fisgado por esse
vendaval de sensações vindas de um objeto ostensivamente iluminado, inusitado.
Tão de repente, a imagem o fez ter
sensações de desalinho, não exatamente mal estar, mas o sentimento de quem
repentinamente se viu perdido por motivo sem precedentes. Era prazer e era
diferente. Alimentá-lo ficando parado ali era quase como ser outra pessoa. O
vermelho do jorro, o preto da ocupação, da chegada sem aviso, sem pedir
aprovação. O escuro se fazia existir sem temores na aquarela, e ele inerte na
frente da vitrine da galeria. Não podia dar mais nem um passo.
Ficou pensando. Seria o caso de
entrar? Mas o que lhe esperava lá dentro poderia detê-lo ainda mais, perigoso
arriscar. De qualquer forma sabia agora necessitar ter a obra por perto, tanto
que temeu não poder pagar por ela. Sobrava a decisão de entrar e obter a
informação. Dureza admitir-se virando refém da imagem e daquela combinação de
cores. Um quadro, quem diria? Ele sequer identificava ainda a coisa como
aquarela. Depois reparou tudo ser diluído, a despeito da força, o que o
fascinou ainda mais pela aparente incongruência entre essas duas naturezas.
Água, e no entanto a marca indelével, como o desejo, e no entanto as consequências
das escolhas. Estava capturado. A vida passava a depender de adquirir o objeto,
não havia nenhuma hipótese de isso não vir a acontecer.
Até que teve coragem e entrou na
galeria. Foi bem recebido, viu outras belas obras sendo apresentadas com
explicações, palavras às quais não prestava muita atenção, tão encantado e
exposto a essa faceta de si mesmo, ainda desconhecida.
Tornara-se consumidor de obras de
arte. Ganho, grandeza brotando no ser de rotina nos brancos e nas serenas
interferências dos enfeites – agora chamaria assim – adornando até hoje todo o
entorno.
A moça da galeria perguntou o que o
atraía especificamente naquela obra em vermelho e preto, e ele se viu tendo de
organizar as surpresas para verbalizar explicação que fizesse sentido.
- Não sei - disse de pronto.
Ela olhou intrigada e ele continuou:
- Acho que sou borrado e exposto
quando vivo, mas nunca havia me dado conta.
Surpreendeu-se falando bonito, estava
imbuído de arte como nunca. Gastou todo o dinheiro disponível, estourou os
limites do cartão de crédito, mas continuou feliz no caminho até o velho
branco, o pálido consultório em que consertava dentes, também todos brancos.
Caminhou feliz e com o quadro bem embrulhado, apertado contra o peito, porque
não quis que o entregassem. Fez questão de levar com a força dos próprios
braços, esse que é o seu mais fiel e mais belo retrato.
:) oi Patrícia :) muito feliz de conhecer seus escritos :) um abraço e tudo de bom!
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