- sonho da personagem Larissa,
que conversa com ela mesma enquanto vai compondo a música para Nyx -
que conversa com ela mesma enquanto vai compondo a música para Nyx -
Compositora L1 - A terra já girava no sentido oposto, eixo em outro lugar, inversão dos pólos magnéticos, não sei... mas você estava bem perto, Nyx, e eu escrevi mentalmente uma pequena partitura ... via a pauta colorida esperando pingos de notinhas que faziam uma dança alegre que depois se tornaria o tema inicial dessa suíte ... e só vou dançar com você.
Compositora L2 - Que os outros gostem. Precisamos de um mínimo de aceitação e não se pode esquecer que é uma encomenda ... nada de excessos, e a sobriedade é mais elegante.
L1 - As pausas de tempo na nossa comunicação, Nyx, fazem uma espécie de sopro em segredo para mim, do quanto eu devo considerar que o silêncio é relevante na dança.
L2 - Silêncio e chuva, nós ouvíamos a música nas gotas e um dia você esqueceu o guarda-chuva na saída do teatro, atrapalhado que estava de tanto eu te olhar. Pensei: ele vai chegar em casa encharcado de músicas novas.
L1 - Eu sopro baixinho no seu ouvido quando chegar a hora de mudar a direção dos passos.
L2 - As cordas evidenciam o quanto eu tenho temores, fragilidades e mania de perfeição. Tudo exige tão completa integração da mente, o corpo em alinhamento, afinação dos sentidos e a concentração tão poderosa... que eu me lembro ainda da primeira vez que segurei meu instrumento mais influente de toda a vida. Era de corda e ali eu desenhei minhas primeiras linhas melódicas ... meio frágeis, meio tontas ... sonhando uma fonte eterna de provisão da inspiração, da beleza ... e a beleza tinha outro nome, também em segredo e só eu saberia.
L1 - ... nome ... Nyx.
L2 - Nome que não se parece com corda, nem com sopro, e sim um chocalho, um brinquedinho bem miúdo da percussão.
L1 - Grandiosas as passagens que eu vislumbro justamente com o teu nome, nada miúdo e sim repleto de paixão por viver.
L2 - Nada ... era paixão por não viver, senão teria visto que ser tão insistentemente amado era a maior glória, no meio de tanta adulação estéril.
L1 - É, nunca te bajulei mas fui extremamente sincera sobre todos os meus sentimentos.
L2 - Fingimos o tempo todo ... que era sempre uma brincadeira de agradar, dessas que se faz com qualquer amigo a quem chamamos displicentemente e sem responsabilidades, de “querido”.
L1 - Você me escreveu, e disse pessoalmente também, que eu era tão querida.
L2 - Não disse nem “querida”, disse “tão querida”.
L1 - Era tão sério o que a gente falava ... que pingo hoje, aqui na água da nossa música que fluiu secretamente de um manancial com ares de proibição, notas simples e diretas, sem dissonância mas com a certeza de que elas têm assim mesmo, como chuva para os olhos, as cores que embaralham a visão e ativam a tal outra realidade.
L2 - Minha percepção se alarga, e eu te vejo no piano tocando a música que eu cansei de pedir, mas você nunca me ligou para tocar assim de surpresa, num gracejo que eu teria hoje como recordar e me alegrar para sempre.
L1 - Para sempre agora só esse fim que não vai mais ter fim.
L2 - Chuva é triste para a maioria, mas em mim é a sua música que alaga tudo e me separa do chão chato e cansativo. Odeio as repetições da vida ... (pausa) como assim, “não vai ter fim”?
L1 - Não era de sol que se falava desde que ele apareceu? Antes era do sol que se falava.
L2 - Sol e chuva, casamento de viúva. Acho que agora virei uma pessoa casada.
L1 - Agora ele morreu.
L2 - Agora ele é outra marcha, uma que anda para trás ... ai, lembrei da terra saindo do eixo, e eu fiquei tonta com isso tudo.
L1 - Podemos começar uma segunda parte agora. Mais calor, e menos água. Água me congela, fico com medo de novo e as cordas vão ser agressivas.
L2 - Eu penso em trompas abrindo caminho para outros sopros, que sobem em escalas ascendentes levando uma torrente de qualquer coisa muito lá em cima. E que o público olhe acima de suas cabeças sem entender nada.
L1 - Nem pensei no piano. Talvez devêssemos não ter piano. Seria algo para fazer a platéia pensar.
L2 - Platéia pensa? Só reclama - Palavras dele, viu?
L1 - Tanta coisa maluca ele me disse.
L2 - E do que tanto você reclama, felizarda que sabia demais?
L1 - ... dizia coisas ingratas também. Sim, eu sabia tanto, mas nem sonhava que ele iria assim, sem uma palavra para ninguém.
L2 - Palavras para quê? É preciso alguma palavra para o que se faz aqui neste momento?
L1 - Não.
L2 - Então deixa ele ir em paz, sem palavras e sem nada.
L1 - Ele ficou mais forte por causa disso, talvez. A ausência de palavras diz o que queremos e o que não podemos ouvir. E engolimos tudo junto, também sem dizer palavra.
L2 - O que não podemos é deixar de reverberar a mesma pergunta um pouco mais. Ainda que não seja exatamente uma fuga, eu quero que um instrumento siga o outro, um fagote talvez, que responda o fraseado dos cellos, ao fundo dessa subida dos sopros nas escalas ascendentes.
L1 - Que ascendência ele tinha sobre mim ... que nunca consegui entender se eu também tinha sobre qualquer ouvinte meu. Meus ouvintes não me importavam, me parece agora.
L2 - Só interessava um único ouvinte. Sim, eu escrevia para que ele me conhecesse melhor.
L1 – A nossa conexão, se é que realmente se deu, em que música está escrita? Em alguma obra inacabada dele, que um dia um pesquisador vai achar e detectar qualquer citação de uma frase minha, furtivamente inserida como quem não quer nada, num dos temas principais da melodia, com um desenvolvimento maravilhoso feito por ele com tanta boa vontade e que finalmente revele um desejo de diálogo com tudo o que eu fiz?
Será que vão ver também que o que eu fiz foi só pela felicidade de saber que ele existia tão vivo e perfeito, tão claro, tão notável?
L2 - Chega, vai.
L1 - Eu queria ouvir isso já. Dançar, sei lá ... que eu estou bêbada de tanta idéia lúcida.
L2 - Por hoje chega de composição.
L1 - A maior catástrofe é a inversão dos pólos magnéticos. E esse ele voltasse dos mortos?
L2 - E eu vi isso, acredita? Não a volta, vi a inversão de tudo ... mas daria na mesma.
L1 - Nem fale, nem fale ... vou fehar as janelas ... já choveu demais aqui dentro.
Patricia Maês
Patrícia,
ResponderExcluirO texto é brilhante, em cada nota.
Monólogo que se abre em dois, diálogo que se dá na primeira pessoa do singular.
Plurais nos pingos pluviais, compondo assim:
"Silêncio e chuva, [...]
Chegar em casa encharcado de música."
"que eu estou bêbada de tanta idéia lúcida."
"vou fehar as janelas ... já choveu demais aqui dentro."
Fala-nos da peça, se puderes...
E parabéns. Você escreve muito, muito bem!
Patrícia,
ResponderExcluirAscendente ou não a escala, a ausência do citado pesa [e paira] mais sobre quem toca do que sobre a plateia. Independente de haver "frases incidentais" do ausente-mais-que-presente na música.
Um beijo.
Katyuscia...
ResponderExcluirOlhando seu trabalho e sabendo que aquilo só pode nascer de quem é inteira poesia, é bom demais ler um comentário desses vindo de você.
Obrigada.
Marcelo, que observação interessante... já está reverberando aqui. Quero que o ausente mais que presente paire insistente sobre todos.
Anotado.
Beijo em vocês dois.