Saí da loja de celulares conferindo nas teclinhas do telefone se a empresa tinha de fato resolvido o problema da mudez do aparelho e da linha. Eu ainda teria de esperar dois dias até que o resultado da reclamação aparecesse. Olhei aquele corredor de shopping com desalento grande, pensando nesse episódio no meio da tarde cortando o dia. Dali para frente o tempo restante nem era muito aproveitável. Incomodada com a situação, não quis ser simplista colocando a culpa na atmosfera de agitação e consumismo excessivos ou no desgosto com o mundo da tecnologia, tantas vezes atrasando nossas vidas quando resolve apresentar enguiço. Não, o incômodo era mais sério. Sentia que nem deveria estar ali, então me mexi rápido.
No final do corredor havia uma loja bem diferente das outras, na grande maioria muito iluminadas e de colorido sem coerência. Nela não tinha vitrine, tudo simples demais. Resolvi abrir a porta.
Lá dentro a atmosfera era totalmente oposta a todo o cenário de antes, quase como se a cor do lugar impedisse o barulho de entrar. Entendi aquele silêncio como quietude, ensejo musical. O lugar, pequeno e aconchegante, estava banhado de uma frágil luz natural vindo da porta no fundo da sala, saída para um modesto jardim, pequeno quintal, como se eu não estivesse mais no meio do shopping.
Reparei em várias cristaleiras enfileiradas e então pensei estar dentro de um antiquário que vendia móveis. Ao me aproximar delas vi jóias de outros tempos em suas prateleiras. Eram belíssimas peças antigas, as mais deslumbrantes já vistas em toda minha vida de mulher admiradora de jóias. Um senhor surgiu do nada e perguntou se eu estava gostando. Correspondi à simpatia de seu tom e disse estar encantada com tudo.
Em cada cristaleira um tipo de jóia. A primeira com anéis, outra só pulseiras, várias de colares. Então o melhor veio. Aquele senhor abriu para mim as portas de uma coisa indescritível e mágica. Tudo isso colocando em minhas mãos o primeiro anel e explicando como agir com ele. O homem apontou a portinha do quintal, a saída para os raios amarelando as paredes.
– Coloque a pedra do anel no sol, e ela vai lhe revelar segredos, pensamentos, sussurros, de quem usou essa jóia um dia.
Por algum motivo, talvez o tom assertivo e simples de quem não fala nada de mais, fui ao sol direto, sem questionar.
Alguns segundos na luz, a pedra brilhando, e então chegou o momento. Levei o anel pertinho do ouvido e pude ouvir claramente uma voz feminina falando baixinho, de fato sussurrando, coisas semelhantes a pensamentos numa instigante sequência de frases e palavras soltas, restinhos de uma declaração muito íntima.
“... Eu olhava aquela parede, lembrava cada gesto seu daquele dia, a mão descuidada derrubando o vaso e manchando o tecido, meu amor... nunca troquei o tecido...”
O homem apontou outra vitrine, e fui me servir de novo. Voltei ao sol.
“... Outro dia ele até olhou com outra expressão... vou falar tudo o que sinto, na próxima vez... juro que vou...”
No anel de safira, “... Meu Deus, perdão, sou tão pequena e fraca... agora vejo, devo ir... ah, não permita mais sofrimento...” , no colar de rubis, “... Adelaide, minha filha, está tocando a sua música... como faço agora com essa ausência?...”
Em uma pulseira de granadas aparecia alguém recitando um poema baixinho, “... Vou me cobrir para todo o sempre com o manto de lã tecido para mim com o seu amor daquele tempo...”, e dali em diante, era impossível dizer qualquer coisa ao senhor que apresentava as peças sabendo perfeitamente o resultado daquilo tudo em mim. Fiz só um gesto, pedindo para escolher eu mesma as pedras.
“... Amanda, adoro quando você me chama Amanda... só você, Antonio, diz meu nome do meio... “
“ ... Ei, você sabe bem. Nunca, nunca, nunca te esqueci...”
“ ... Não, eu nunca iria embora sem você, querido... você é quem foi...”
Fiquei enlouquecida com tanta revelação, não sabia nada de pedras guardando nossos segredos, gravando vozes, mesmo se fosse em pensamento. Acabei ouvindo música em colares, e de um topázio imperial saía o som miúdo de um piano tocando ao longe, certamente lembrança da pessoa.
Meu coração não se aquietava, eu obviamente tinha de escolher entre as jóias, levar comigo a mais tocante. O senhor saiu de perto, como quem já tivesse cumprido a missão de me tirar deste mundo. Agora já estava feito, ele sabia, e eu a sós com o universo de discretos cochichos de gente tão distante.
Aquele acontecimento da tarde cortada de forma a não dar mais espaço a novidades, foi a oportunidade de ruptura na repetição estéril de minhas recentes e frustrantes convicções em torno da incomunicabilidade, dolorosa limitação neste mundo de linguagens pelas quais passeio e que parecem sempre insuficientemente promissoras. Nas minhas horas de trabalho solitário, paixão de um ofício, submersa em eternas dúvidas sobre quem se interessaria pelas palavras surgidas no jorro misterioso, jorro das pontas dos dedos e do fundo de uma mente ambiciosa por poder pacificar um só coração que seja, jamais suspeitaria dessa fonte de suprimentos para a imaginação. O desencontro que a tecnologia avançada apresentara a partir de um aparelho falho, seria a grande propulsão para a visão da comunicação em abrangência nunca antes ambicionada por mim. Tão simples era, tão distante de sonhar. Eu acabara de varar dimensões, furar momentos mínimos em suas profundidades deslocadas da linearidade com que contamos o tempo e o vemos passar. Nada era linear no espírito daquele lugar sem cabimento e o tempo era de grande inverossimilhança. Tudo pode pular para frente e para trás, um segundo mirado verticalmente, cada centésimo dele espichado na altura e largura de horas de conversas importantes ou efêmeras, mas que ali estavam gravadas irremediavelmente porque alguém quis, um dia, nunca se esquecer. Eu proporcionava àqueles sussurros de segredos, particularidades ditas em tão privada intimidade, pensamentos encobertos por temores e obrigatórias dissimulações, a bênção de serem sabidas tanto tempo depois, ainda que só por mim. Nesse caso, dizer que eu acabara de ganhar o dia seria reduzir tudo ao mínimo possível. Eu ganhara a preciosidade de ser imprescindível, perpetuando e ampliando os horizontes do que ouvia, dando à luz, literalmente no sol daquele quintal, desejos urgentes declarados em total ardor, gritos sufocados em almas flamejantes caladas logo em seguida, como em constrita oração. Ouvi tudo e sabia que essas jóias enriqueciam o repertório de memórias, como colecionei em toda a minha vida de observadora atenta, todo o tempo na espreita do secreto que foge pelo canto dos olhos e das entrelinhas das pessoas com quem vou ter. Eu agora era a ponte entre esses corações marcados em pulso e vigor total de outros tempos, e o momento presente de ouvidos que também pulsam. Pensei em meus pendentes, anéis, pedra de qualquer adorno, no que teriam a dizer. Depois ri, porque graças a Deus sei que terão sim, momentos de calor e verdade e de segredos bonitos. Eu vivo.
Comprei dois anéis, um bem simples, só porque tocava música conhecida e querida, e outro que deixava ouvir a declaração de amor de alguém corajosa e determinada.
Ao pagar pelas aquisições, ainda olhei com volúpia a pulseira falando embriagada estranhas descrições do mar. Ela era linda. Mas me contive e resolvi que muitas voltas àquela loja seriam necessárias. Agradeci por tudo ao senhor habilidoso, sem demora já aprontando os dois pacotinhos.
- Vou voltar, com certeza, quero passar mais tardes no meio disso para o que nem tenho palavras. Ainda não sei se acredito...
Ele sorriu, e lançou o olhar por onde não escapavam e sim explodiam milhares de significados, respondendo:
- Claro. Volte sim, volte logo.
No momento em que eu já me virava o vi apontando uma cristaleira separada das outras, e fui detida nos meus passos:
- Você ainda nem ouviu os brincos.
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