modular é necessário







domingo, 24 de junho de 2012

conto com sentido



Parece que todo mundo só vive quando não em trânsito, que o tempo entre uma coisa e outra, entre um lugar e outro, não é tempo. A hora dentro do carro também conta como hora de vida, e mesmo com a cidade barulhenta, os motoristas apressados e nada altruístas, o vandalismo dos borrões sem mensagem nas paredes que maltratam qualquer bom gosto, é preciso sabedoria para se entender com o bem estar também nessa situação. O cruzar é vida, é tempo de lembrar a música, questionar como se fosse terapia, lamentar a própria imprudência ao parar sobre a faixa de pedestres. Tudo é estrada, e parte do trafegar bem é, sim, escolha. E na grande maioria dos dias, a escolha dela é o som da respiração que vai mudando de intensidade por pura experimentação.
Sossego considerável ao volante. Tempos depois, acabará atinando que essa paz conquistada era a porta aberta justamente ao melhor de gostar tanto de respirar, porque nada fica sem resposta. O peito é elástico, infla, muda. E mudar é abençoado. O que mudaria? Na hora isso não nos ocorre.
Ela solta a respiração com gemidos, gemidos sentidos, e sempre teve mania de suspirar. Quando era adolescente o fazia ainda mais, suspirava lembrando da aula de canto, o olhar da professora que duvidava que ela atingisse o tal sentimento que aquelas músicas pediam. Canções de sofrimento por perdas, de amores doídos, e a menina nada desabrochada cantava forçando nos agudos, tentando achar sua voz. “Uma soprano enrustida”, disse a senhora, “só que muito talentosa”. Mas queria ser contralto, queria outra forma de se colocar no mundo... mais força, já que associava ainda a força ao que é grave e popularmente chamado de grosso. “Fulana tem voz grossa”... logo é de alma que suporta o peso, tem sustentação larga. A idéia e sinal de masculinidade seriam revistas só bem mais tarde, e assim, o feminino e suas coragens ditadas por exatas delicadezas, também.
Hoje se lembra das “suspiradas” da adolescência neste mesmo percurso, o mesmo caminho, só que dentro de um ônibus quando voltava da escola. Cansada de estudo e cadernos no colo. Corpo ainda por se formar na espera da hora em que as delicadezas se imporiam, a mulher gritaria e pediria silêncio às demais vozes, os outros clamores internos que não deixavam que o principal se fizesse mais notável. A voz aguardada era voz de destaque de uma vida, e seria guia das escolhas e interesses que raramente mudam. A voz a colocaria inteira diante da constatação de que era quem era.  Suspiro grave ou suspiro agudo, canto grave ou canto agudo, tudo seria de base larga, a maneira como se expressava era de gente decidida e isso já era o mundo ganho, porque ela queria ser dona de seu nariz e do corpo inteiro.
Há a calma e ela queria ensinar respiração. Ministrar cursos de prazer com o ar seria de nobreza absoluta. Um anúncio no jornal? Seus amigos não se interessavam pela ciência longamente sistematizada, compêndios escritos ao longo dos anos, enquanto sentia crescer a mudança, o apurar da técnica, idéias de descobertas a mais. E isso ia se desenvolvendo sem pretensão nos intervalos de qualquer atividade, anotações impulsivas nas agendas sempre à mão, aquilo que agregava mais valor ao dia e a fazia sorrir. Anotava tudo o que descobria sobre essa arte, às vezes pequenas mas significativas observações sobre como o corpo respondia a tudo. Agora ela aperta suas coxas deixando-as marcadas, inspira junto com o movimento dos dedos, em garra. Mas só a pele na pele não adianta. O movimento do ar entrando e saindo é que dá a idéia da temperatura do contato. Sim, como não acreditavam nela? Quanto prazer desperdiçado.
Pegou para si um cheiro de gasolina perto de uma esquina e o cheiro de restaurante na outra. Só que não é sentir simplesmente, e sim respirar cheiro. É outra qualidade de receber, que é mais uma incorporação, é deixar que aquilo penetre e faça parte do fluxo contínuo de movimentação dentro, rearranjo de todos os tecidos e então quando as reentrâncias se alimentam do que passa, limpo ou sujo nem importa. São acontecimentos do trajeto e nele tudo acaba em delícia, porque ela quer assim.
Em que circunstâncias da vida esqueceu-se que isso opera milagres? Ah, foram muitas... tantas vezes nem lhe ocorreu que acionando a respiração consciente mudava o que se chama de “ar da sua graça”, e assim transformava as respostas a qualquer estímulo que jogasse no mundo. As pessoas são permeáveis à maneira como respiramos, e negligenciar o fato nas horas importantes era de tal forma amadorismo, que não queria mais passar por tal experiência. Precisava de domínio total. Tanto queria a excelência que pensava em ensinar. Só se ensina aquilo que se deseja aprender. Ela quer mais. “Hoje eu respiro plenamente? Estou no meu limite?”... não tem ideia, mas como se sabe, na hora isso não nos ocorre. O que podemos saber de tudo o que sabemos, ainda é pouco perto de tudo o que não se pode saber. “Então as respostas viriam até mim como?” - insiste. Crê na ocorrência de um fato revelador. “Será que respiro assim porque há nisso interesses? Não é prazer em si, é prazer que quer chamar outro? Isso não vale.” Não mais apertou as coxas. Olhou séria a avenida à frente, e freou com o susto que virou grito. Falha de atenção, presença fraca, e tudo o que pensara antes vai em um instante por água abaixo. A pessoa ausente sem saber-se ausente, isso piora tudo. Lástima. Estava dada a resposta: então respirar era só prazer querendo chamar outro, coisa grave de se descobrir a esta altura dos acontecimentos – e do compêndio.
O farol demorava a abrir e agora ela tinha pressa. O bom era acabar com aquilo logo, a viagem solitária dentro do carro, as divagações nunca compartilhadas, a arrogância de achar o ar mais benéfico nela do que nos demais só porque não queriam entender.
O fluxo segue na avenida, carros vão, apenas vão. Tristeza com o episódio do farol. Por se iludir, porque sim, porque antecipava as coisas, a chegada em casa, o descanso, e era mentira a vivência exclusiva no presente. Mentira a percepção ativada para fora e para dentro. Tudo era apenas para dentro, no futuro ou passado. E o mundo não mudaria por causa dela.
No farol mais adiante, o carro ao lado buzina e de repente a faz intuir que alguém a chama. Há um homem debruçado sobre o banco do passageiro, inclinado na sua direção. Ela percebe com o canto da visão, até que olha.
O tempo previsível do trajeto, a experiência do momento, a pretensa meditação acalmando as atividades do dia, preparação para a chegada, nada disso existe mais a partir de então. Ela já não sabe nem para onde se dirige. Por alguns segundos já não sabe nem o seu nome, a idade, a profissão... mas sabe bem o nome dele, a idade, e a profissão. Se reencontraram, era fato. E tão claramente adorável quanto profundamente atordoante. No entanto, outra vez surpreendentemente lúcida para o que era de maior interesse, respirou e sinalizou com naturalidade que encostassem seus carros na primeira parada à frente, logo à direita onde encostam os taxis.
Ele fez sinal de positivo com o polegar, sorriu, e concluiu com delicadeza toda a manobra necessária. Foi prático, controlado, deu a seta e olhou o motorista do outro lado, que intuitivamente fez sua parte com muita classe, sem pensar, sem complicar.
Então lá podiam estar os dois, a essa hora, sol da tarde, e um diante do outro, em pé. Os dois carros para trás, tudo para trás, e só o que havia era a imagem forte à frente. De um caminho outro, trajeto outro, veículo, vontade, velocidade outra, antecipação outra, esquecimento, lembrança, expectativa, graça outra. E eles sem demora simplesmente aceleraram, já que faróis que se abrem pedem prontidão, presença de espírito e às vezes esperteza. Nesse momento nenhum dos dois se lembrou de respirar. Tocaram-se sufocados, os caminhos de dentro precisando de um sopro. Ela pensaria depois, em como explicar a teoria do fluxo vivo de ar, certamente. Teria de ensinar para finalmente aprender. Contudo, por hora, inflavam-se de falta de tudo. E rompiam dentro, com tudo.

Um comentário:

  1. Um conto-crônica, uma crônica-conto, um olhar refletido, uma contemplação crítica nos "intervalos" da vida, onde tudo pulsa tanto quanto.

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