modular é necessário







quinta-feira, 8 de novembro de 2012

das tempestades - primeiro capítulo


 
 
Minha mãe pressentia coisas naquela tarde. Não sabia o que o vento ao contrário queria dizer, mas sabia, pela natureza de mulher que se emparelha com a outra, a da magia de bicho e árvores, que algo era mudança. Julgava a simplicidade do fato a partir de seu cabelo arrepiando diferente assim que soprou o vento torto, e seu corpo de mulher reagindo a uma sensação nova enquanto passava a escova tentando ajeitar o sentimento, como se eles se alinhassem junto com as mechas. Ela queria domar sua intuição, e percebeu isso logo, desistindo de escovar a sorte.
Eu estava para nascer, e sua barriga já era de nove meses. Por esse motivo, nada mais natural que forças da natureza falassem com ela de um jeito mais intimista, que os recados do vento e do mormaço fossem entregues ao seu entendimento rapidamente, suave feição do tempo fazendo na pele sensações. Ela lia nas entrelinhas dos acontecimentos, não queria racionalizar tudo e nem poderia, mas tinha nas veias a palavra “sei” correndo solta, os membros em alerta como se tivesse de agarrar uma ave que passasse de repente. Um salto e um abraço, encolhimento e aconchego, ela estava pronta.
No anoitecer o homem avisou que escolhera sair. Os barcos na prainha arrumados em fileira, pessoas de todas as idades com cenho franzido em preocupação. Não teria sido só dela o presságio. E assim foi que na noite mais alta saíram todos, e o marido puxou a mulher pela mão, sem palavras indicando que era para não ter medo.
No barco que balançava ela duvidava de coisas das mais variadas. As intenções incompreensíveis do outro , o motivo que ele teria para arrastá-la na aventura noturna. Pescaria era coisa dos homens, e na mente dela esse pensamento se misturava com outros, gerando a mesma confusão. Quanta dúvida. Olhava o marido sem captá-lo, embora entendesse até a natureza daquela viração que se anunciava. “E homem tem coração?” Pensava e não respondia... “mas diz que tem”... e sossegava só quando lembrava do desejo de sua barriga desaguar um menino. Isso porque a mulher sofre mais, padece dessas dúvidas todas e morre sempre sem resposta. Que a vida não dá fácil o repouso para aquelas que questionam, não se revela à toa nem para ela que arregala os olhos tanto e tanto, quando observa esse homem, ele na frente do barco, e justamente o primeiro a admitir em voz alta que vai chover.
Os pingos caem grossos já desde o começo, e minha mãe olha o ventre, a água que molha o invólucro da cria que está prestes a chegar, e que deve ouvir o som de cada gota.
Ela não queria estar ali. E ele sabia disso? Perguntava em segredo de si mesma, de novo.
A barriga encharcada e o barco fazendo água. Os homens esvaziaram latas de chumbinho para as tarrafas, e com essas latas jogavam a água para fora da canoa. O barco se estreitava, na maneira como ela ia sentindo. As costas mal apoiadas na madeira que era dura e  não servia para apoiar a dor. Mal estar sem descanso nos últimos dias, a espinha em fogo, e agora nem esse vento molhado, a rajada fria que de repente faz  os homens passarem a bufar como em arrependimento que não se diz. Nada disso é remédio e faz amenizar o peso. Mulher prestes a parir tem de recostar e respirar com calma, mas ela tinha o coração acelerado e tudo era de tal forma sem sentido que uma apatia a tomou de súbito, afinal de nada servia naquela hora sentir coisas, de nada servia ter sentimento em desalinho com a situação. O barco estava no meio do mar, era alta noite, e os homens lutavam contra um naufrágio. À beira do abismo ninguém reclama além de um suspiro. Nada a fazer, nada a pensar. Ela lamentava quieta, e como recurso último de sua parca vontade, escolheu não mais olhar o homem da ponta do barco, seu marido para quem não tinha mais nome para dar.
Os olhos pesavam, a água caía forte. As pálpebras escurecidas de minha mãe pareciam a conversão em sombra, do choro que de nada adiantaria ter saído. Desde o primeiro filho uma voz a acompanhava por dentro, mexendo em ferida que ela nunca queria cutucar. Deixava quieta, junto com as dúvidas, as perguntas sem resposta sobre o coração dos outros, as próprias penas, e tudo corria para dentro das latas agora. A fúria deles todos, tentando não afundar.
 
Natureza não assusta. O que amedronta é o coração dos homens. Minha mãe tinha razão para não olhar mais para frente. Abaixara-se encolhida como podia, uma concha olhando a própria barriga encharcada. Ela fez uma escolha em segredo, ficar impávida, sem julgar o balanço piorando a cada onda que pulavam e que contavam como uma a menos. Estavam indo em direção à margem. E aquilo era rio ou era mar? Ela não sentia o sal. Então chorava? Era por ter lágrima correndo que o sal se disfarçava em coisa tão natural? Nem sabia o que seus olhos aprontavam. O coração disparado era o mais importante. As batidas que nunca esqueceria assim como aquela imagem da barriga molhada. Tudo isso seria eterno.
Chegaram na praia. O homem da frente saltou primeiro do barco, olhou para ela e veio ajuda-la a se levantar. Foi então que minha mãe viu de novo o rosto de meu pai. Este agora mais interado de sua condição, a julgar pela seriedade com que a tirou de sua posição encruada, a concha respirando arfante na ponta de trás da embarcação. Os olhos de minha mãe deviam estar denunciando a viração maior ainda, o seu corpo é que precisava chover agora, de alguma forma.
Eu estava chegando, e no aguaceiro, meu pai indicou logo adiante um casebre vazio. A grávida ainda mais quieta. Outra dúvida surgia e era para a sua coleção de perguntas que não se responde. Como meu pai sabia do casebre, como aquele refúgio existia, como era fácil de repente sair da situação tão adversa?
Na salinha uma cama foi para minha mãe o que de melhor o mundo poderia lhe oferecer. Ela era grata por estar embaixo de um teto. Sua roupa molhada, seu cabelo pingando, a água que não sabia se era doce ou salgada, o som no telhado de folhas, a cor das paredes nuas, o nada que se apresentava lá dentro, todo um mundo desordenado. Ela continuava resignada, olhos escuros olhando a noite escura, sem dizer o que pensava, porque pensava demais e isso tinha finalmente de virar sentimento, caso contrário desandaria a falar. As forças teriam de ser reservadas agora a atender os mandos da natureza que dela mesma nascia, o corpo que se contorcia para que outras águas achassem seu nicho de correr, o rio caudaloso prestes a desaguar, o choro que desanuviaria por fim o medo. Medo. Medo de tudo. Tanto medo que até o momento último da sua hora, ela não soltaria um gemido sequer.
O homem veio com uma pequena vasilha e lá dentro tinha um pouco de água. Era tudo o que tínhamos, eu já então participando do evento. Foi meu pai quem ajudou minha mãe na hora mais difícil. Me puxou para fora, e ficou surpreso com o que viu. A primeira preocupação de minha mãe foi perguntar se era homem, o filho que ela queria que nunca sofresse. Mas meu pai lhe deu a notícia de que eu era mulher, e logo exclamou ser muito estranho criança nascer de bruços, com as duas mãos tampando o rosto, como quem sai sem querer sair. No fundo dos pensamentos de minha mãe, sem saber um resquício mínimo disso, havia a ideia de que era óbvio. Eu não queria ter como primeira visão neste mundo o rosto de um homem, de um ser que encerra perguntas que não se respondem, pois eu seria uma pessoa de grandes perguntas, e nunca sossegaria com a resposta de que não havia resposta. Eu seria uma mulher de solução.
Não sabiam cortar o cordão umbilical, e como meu pai estava mesmo familiarizado com a região, sabia da índia por perto que poderia ajudá-los. A mulher foi trazida, fez seu serviço, me segurou nos braços e sempre em silêncio olhava para um e para outro. Outros segredos, pensou minha mãe sem dizer, de novo, nada. E a índia entregou-me em seus braços vaticinando: essa nunca vai ter filho. Minha mãe sem dizer, mas em íntima quase oração, desejou que se fosse para sair mulher, que eu não tivesse mesmo.
O que foi previsto se cumpriu. Nunca tive filhos. Saímos daquele casebre para que eu crescesse em outros cantos, viajasse e visse muita coisa, mas de dentro de mim brotaram sempre palavras, questões, e a negação ao jeito de quem se resigna a não querer resposta. Eu pari perguntas por toda minha vida.
E é esta a vida que revejo desde o começo, como quem quer passar a limpo uma história inaugurada no mistério, nas águas escuras de uma noite virada, na lua que mudava e deixava marés inquietas. Eu procuro as respostas que ela nunca ousou reivindicar. Meus temores são de verdade. Meus olhos indagam como os de minha mãe naquela noite, e meu ventre também vive todo encharcado.

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