modular é necessário







quarta-feira, 9 de outubro de 2013

silenciosa




O recomendado pelo pedreiro que faz a manutenção dessas coisas no edifício é mudança no banho. A hidromassagem vaza e o apartamento logo abaixo recebe infiltração em forma de uma enorme mancha escura por todo o teto. Será necessária a total remoção da banheira para se consertar o que fez a água escoar para onde não deveria.
Mas ela não tem dinheiro. A aposentadoria precoce, devido a um problema sério de saúde, não lhe garantiu receber quantia justa, e no meio de tanta perturbação na hora dos acordos para que esses trâmites fossem encerrados de uma vez por todas, ela achou por bem não reclamar de nada e se contentar com o estabelecido.
                  A reforma está fora de alcance. E isso muda não apenas os banhos, mas a sua principal atividade. Há exatos nove meses, a chama de ser um bicho social se apagou dentro dela, e desse modo lá se foi a vontade de ser vista ou necessária. Viver o silêncio em um mundo observado apenas pela janela ficou sendo a melhor opção. E ela encarou como trabalho, fez isso para sentir-se dona de um projeto de vida, coisa que justificaria a reclusão e a pouparia, sobretudo, de questionar o medo dos novos estímulos. Pensou nos artistas que escolhiam o isolamento como condição primeira para chegar em realização e dignidade. E ela era digna com toda a quietude, não ajudava em nada, mas não fazia mal a ninguém, não incomodava e nem divergia. Como isso era bem vindo. Estar no mundo da forma mais delicada, não pertencer a ele ostensivamente, querendo coisas, engendrando mudanças. Nunca mais, nada disso. Ela só queria dar paz e receber indiferença, aquela que nunca a cobraria de ter um pouco mais ou de parecer adequada. Estava, inclusive, ficando antiga, as roupas tratadas com carinho para que demorassem a envelhecer ficando inevitavelmente fora de moda. Mas não ligar era parte importante do desprendimento.
E foi quando assumiu a nova condição, a não dependência de aprovação, que resolveu ter um luxo e saber chamar a isso de prazer. Mandou instalar o pocinho com jatinhos de água provedores do relaxamento e então a brincadeira da vida ainda não havia acabado de todo. Duas vezes ao dia se despia e entrava no particular recanto de não dar satisfações a ninguém. Os  momentos na água seriam as sagradas horas de desfrutar ser ela mesma sem aqueles receios habituais, como quando pensava em ir à rua fazer compras. Com isso gastava também menos dinheiro, porque encontrou um divertimento ali no lugar mais escondido da casa, o banheiro bolha de indiscutível confiabilidade, onde nada escoava da pouca renda, nada era cobrado de seu tempo de fazer só o que quisesse.
No fim da tarde, quando já começava a escurecer dentro da sala de banho e esconderijo, a água parecia mais interessante. A hidromassagem era desligada e o silêncio só se quebrava com pequenos pingos, gotas diminutas, frágeis como ela mesma se via. E aí então não estava mais só em seu pequeno estar, cuidando para ocupar espaço de maneira miúda.
Mas a paz aquática estava agora ameaçada. O pedreiro dizendo que essa e aquela torneira não deveriam ser abertas jamais. E quando o homem saiu do apartamento ela se viu com o problema: o que será de meus momentos? Transitou entre os quartos e a sala por horas, refazendo contas mentalmente, até ter certeza de que as finanças não comportavam o que lhe estava sendo proposto. Teria de voltar aos banhos comuns, sem os jatinhos e bolhinhas com sons de natureza. Tudo bem, repetia, e chegou a dizer em voz alta, no tom de resignação completa.
No chá das três, pensou que seria o momento de submergir. Lembrou que vez ou outra até levava a xícara para a banheira. E lá ficava, beneficiando-se dos aromas misturados, água pura, límpida, e o chá. Erva cidreira, doce, camomila, tudo sempre calmante. Mas agora não mais a imersão, não mais o outro mundo onde os medos se molham e dissolvem escorrendo no vapor do azulejo. Bom mesmo era estar envolta no líquido quente, a água na pele que nem carinho mais espera.
Os azulejos estampados de verde musgo com pinceladas de rosa pálido são muito reconfortantes. Folhagens sobem pelas paredes com singelas florzinhas que dizem muito do novo estilo discreto, e do tipo que, mal se viu, já se esvai. São flores nubladas e derretidas, cores que nunca agridem.
E então o chá fica diferente no dia da notícia. A grande distração, afinal chamada de prazer, havia sido vetada. Restava a televisão, e era só acioná-la. Mas nada daquela chuva de cores e sons desordenados, o mau gosto das vozes como se a vida fosse só festa lhe agradava mais. Repelia tudo o que se parecesse com aquilo. Livros? Já havia experimentado mais de uma vez todos os da estante. Ginástica, talvez, mas o corpo pedia a calma dos iogues, vivida alegremente na cápsula de mergulhar. Tudo teria ido pelo ralo, tudo lhe teria sido negado por causa da mancha no banheiro alheio. Nenhum sentido.
De repente achou de grande brutalidade essa nova condição. A mulher quieta ali, pouco parou nesse tempo todo até para imaginar que existia gente no andar abaixo. A aquisição da banheira era um ato lavrado de que agora ela se bastava, tanto que a mini natureza estava garantida para não precisar atravessar o caminho de mais ninguém. Assim, a razão do acontecimento lhe escapava com gravidade. E aos poucos foi se tornando inconformada.
No dia seguinte se conteve triste nas horas do tradicional descanso. Olhou as paredes da cozinha e leu o folheto de ofertas deixado na soleira da porta. Nem o chá tinha muito sabor, em tudo faltava aquela energia que ainda a fazia pensar em ser alguém. Dessa forma, sem objetivo de agrado nos dias, ela passava a se parecer cada vez mais com as flores desbotadas nas folhagens subindo pelas paredes. E visitava com frequência seu espaço sagrado, acariciava o ladrilho onde pousava a xícara habitualmente, vendo tudo com desgosto.
As contas eram refeitas de tempos em tempos, números no caderno fazendo o mesmo percurso, mas nada de novidades. A falta de folga nas finanças ainda não tinha lhe surpreendido como dessa vez. O comedimento era encarado sem desconforto, porque precisava cada vez menos de requintes ou mimos. Estava vivendo fase de grande satisfação e podia se dizer abastada na medida em que não esbarrava em controvérsias, e por controvérsias ela entendia qualquer contato, de qualquer espécie, com qualquer pessoa.
Tentou se instalar dentro da banheira seca para tomar o chá, imaginou no fim da tarde os pingos companheiros e cantarolou uma música apreciando o eco que ali fazia. Depois viu que não precisava de música.
Tentou de tudo, ficou nua e olhou seu corpo, imaginou que era bonita, forçou ao máximo até chegar em um prazer mísero que a fizesse lembrar da entrega ao mundo impenetrável sobre o qual ninguém jamais saberia e que nunca precisaria dividir. O mergulho era, portanto, como a liberdade, era como ter segredos a mais, como criar, como se inventar. Sem o prazer das águas ela estava enredada no universo das repetições. Tinha de ficar perambulando, o dia sem quebras de acontecimentos relevantes dividindo o tempo, dando sentido às horas de sobra ao redor.
Então resolveu fingir que não sabia de nada. Abriu as torneiras, encheu a banheira e se recostou para apreciar a madrugada de uma noite em que não podia dormir. Fez isso continuadamente, certa de que nada aconteceria, afinal, o que uma mancha no teto poderia denunciar era mínimo. Se enganou.
Passou pouco tempo até que tocassem a campainha. A mulher abriu a porta assustada, não se relacionava com os moradores do prédio. O vizinho disse saber do uso da hidromassagem, porque além de ouvir o barulho da água, a mancha estava ficando mais intensa. O moço perguntou se o conserto do vazamento seria realizado e ela, tão desprevenida e sem malícia, disse a verdade, disse não ter dinheiro esperando talvez compreensão. Percebeu que ele não podia crer em tanta simplicidade para comunicar o voluntário agravamento de um problema como aquele, e que a tratou como alguém com certa debilidade. Ela preferiu abstrair esse detalhe sem se ofender, prometendo não fazer mais nada. Tudo para obter logo o alívio de fechar a porta e encerrar contato.
Mas nada parou. Chás e imersão, relaxamento e indiferença. As semanas passavam e ninguém se manifestava. Assim pensou em tudo finalmente definido, vizinho consciente das suas dificuldades, o mundo em concordância com o que ela podia fazer.
Mas chega a tarde de surpresa ainda pior do que o estranho à porta. No chão se via uma poça de água escura, água brotando de todos os cantos daquelas paredes de folhagens tão tranquilas. O líquido quase negro era espesso, tinha aspecto viscoso e começava a exalar cheiro estranho. Curiosamente passou a achar a banheira um cubículo pequeno demais. Ela queria sair dali e não conseguia, porque pisar naquele mistério seria impossível. A campainha e o telefone tocavam ao mesmo tempo, quando então viu tudo fora de controle.
Venceu a aflição do lodo, vestiu o primeiro vestido que viu pela frente, e, ainda molhada, abriu a porta. O telefone explodia, e no corredor do prédio várias pessoas a olhavam indignadas. Parecia que o vazamento tinha tomado proporções assustadoras, um cano havia se rompido e a água escura escorria pelas paredes de vários dos apartamentos. E não era o caso de se explicar, afinal fora pega no pulo, molhada e recém saída do banho causador da encrenca.
Depois de longos minutos de mal estar, sem poder se defender, chegou finalmente a hora de se recolher e planejar como limpar tudo aquilo. A banheira estava cheia, o chão alagado, a sujeira vazando para o quarto, corredor, tomando a casa.
Ficou sem ação. A campainha tocou novamente, dessa vez com gente querendo olhar o estrago, oferecendo o que deveria soar como ajuda, mas que soou muito mais como intromissão. Estavam todos loucos para ver a casa da reclusa misteriosa.
Ela disse não à expectativa geral, e a insistência de todo o prédio se juntava à dela mesma em não saber o primeiro passo para começar a organizar-se.
Até que quis voltar à proteção na hora em que o barulho das chamadas era um só grito sufocante. Passou dessa vez pela sujeira já sem nojo, não sentindo nada. E aí percebeu os sons cessando subitamente. Viu a xícara de chá esperando com o líquido frio, o próprio tanque todo frio. Como poderia ter se esquecido? Entrou novamente no banho, suspirou relaxada e abriu as torneiras todas. Viu a água transbordando, o calor voltando, e não ligou. Continuou bebendo tranquila, até que ouviu o estrondo vindo da sala e atinou na hora que era a porta sendo arrombada. O máximo que conseguiu foi no ímpeto do desagrado atirar a xícara na parede, mas logo retomou a calmaria.
O homem da manutenção apareceu e a encontrou inerte, olhar fixo para os azulejos. Constrangido, chamou várias vezes, mas não ouviu resposta.
Nesse dia, durante toda a tarde, o apartamento foi visitado pelo edifício inteiro, o recôndito sendo espiado por cada morador, todos em fila indiana no corredor dos quartos, muita organização e atenção para a apreciação da exposição. Ela era parte de inédita instalação que atraía expectadores sedentos e curiosos com o que essa mulher tão calada pode ter de mais secreto.
Os olhares eram cheios de significados, mas ela escolhia não encarar para não ter de classificar. Sabia só da pura e insensível curiosidade, morbidez exposta ali como socialmente aceitável, tentação de invadir e deixar escancarado que viver em reclusão não poderia ficar por isso mesmo. Nunca. Não neste mundo de gente normal pedindo relações, exigindo que sejamos todos razoáveis na boa vontade de participar.
A fila andava vagarosa e a estátua inerte se fixava nas flores cor de rosa, ainda de alguma forma imbuída de espírito estóico, sem baixar a cabeça, mas também sem reflexo para se cobrir. Ela se protegia, mas sabia que o fazia de um jeito incompleto. E de qualquer forma nada mais contava, a bolha havia sido estourada, o invólucro protetor das questões mais mundanas rompido para nunca mais voltar a ser o mesmo. Nem que ganhasse o dinheiro necessário para comprar outra banheira, reformar a casa toda, e nem se com isso ela ganhasse mais conforto. Agora era mesmo tudo pelo chão, junto com a água preta.
A vida ali já não era nada. O que lhe parecia ser o acabado de antes se tornava, aos poucos, o oposto da não vida deflagrada nesse dia, resultado do contato brusco com a desenfreada falta de comedimento do universo. Há nove meses ela quis dar seu último basta e agora via o nascimento da monstruosidade tão temida. Atirar aquele objeto na parede ilustrava o que já podia suspeitar de todo o esgotamento, passageiro freqüente nos dias, e então tal sentimento assumia outra importância nessa hora.
Só quando escureceu a visitação parou. No anoitecer saiu enfim do encantamento sobre o qual não havia mais nada que pretendesse compreender. Conseguiu levantar, deixar o poço gelado e alcançar a toalha, enrolar o corpo que já havia sido parte das coisas que guardaria do mundo. Cobriu-se, mesmo sabendo que nunca mais deixaria de estar exposta. Suspirou sem sentimentos, e como se fosse nada, colheu os cacos da xícara quebrada há horas. Seus cabelos voaram sobre o rosto, e como gesto natural fechou a janela deixada aberta. Era tudo inútil, já que sabia que nunca mais pararia de sentir o frio.
A água no chão permanecia. Escura, difícil, errada. Mas a água estava, ao menos, silenciosa.

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