modular é necessário







quinta-feira, 10 de outubro de 2013

fragrância liberdade

                                                                                                Francesca Woodman


A vida de Helena no presídio, onde a hora do banho era o recomeçar de cada dia, estratégia simples de manutenção da autoestima, esse mistério alimentado pelo fato de manter perfumado o possível, sentir-se limpa apesar de tudo. Talvez por ser isso, limpa, o oposto simbólico do que poderiam pensar dela aqueles que ficaram do lado de fora, quem a viu ser condenada, ganhar a ficha permanentemente carimbada, e a mácula que sobreviveria à sua história.
O tempo. As horas que passava dobrando e redobrando roupas em duas pequenas gavetas. O pouco que tinha e que ela experimentava, costurava ajustes, mantendo-se vaidosa e magra. Tentava calcular sobre os anos que teria ali dentro, o quanto se sustentaria conservada caso não desistisse dos rituais tão ligados à integridade desse ser que no seu íntimo, chamava a si mesma de menina. Pelo menos era assim até entrar ali. E era preciso ter persistência. Ficava perto das colegas que entendiam suas motivações, e as que não a compreendiam em tão fervoroso empenho para ser positiva, ela tentava ignorar. Das colegas próximas, influenciou muitas a ter esses específicos cuidados, mostrando a simplicidade de se caprichar no banho, apropriar-se de prazer no simples gesto de cuidar dos cabelos, e o quanto isso estava intimamente ligado a ter esperança. Todo o fazer estava preso a elas mesmas, os corpos, entrada de seus espíritos castigados além da conta.
Sim, ela sabia ser contagiante. Dizia de formas variadas ser preciso superar o desânimo vindo do nojo pelos azulejos que ganhavam respingos do banho de tantos outros corpos. O importante era manter o foco no perfume que ficaria daquele bravo ato. Abstrair o que não poderia ser contornado, focar na construção e conquista da delicadeza de se sentirem moças de asseio exemplar, a vida com dignidade mesmo em clausura. A sensação extraída disso lhes garantiria a vida, e a sensação era a cada manhã nova, de uma leveza e manha, como só uma menina de fato pode inspirar.
Assim era o mundo de Helena, penteando-se tão cedinho e escolhendo o vidrinho de suas loções baratas trazidas por sua única visita. Ela era feliz naquele momento em que o cheiro doce e fresco se espalhava por toda a cela, e de lá agradecia a Deus por estar tão perto da verdade de sua alma mesmo estando tão longe do que chama de casa.
A mulher que por um passo em falso seria para sempre chamada de não pura, não o suficiente para viver além do mundo emparedado. Durante a permanência nesse mundo, ela teria de ir até o fundo das outras paredes, as da vida de antes, descobrir o que nela fez abrir desde muito cedo os portões do inferno. E o inferno hoje só não lhe parece mais assombrado porque em seu coração que não desiste, uma voz adverte para não concordar de todo com o veredicto, não se permitir ver tudo caindo em desgraça sem retorno. Haveria um ponto de mudança. Um mergulho corajoso dentro de sua falha e depois no nascimento do que veio a dar nisso, a nova condição interior, ajudaria a encontrar o antídoto do destino mau. A virada.
Mas além do feito ruim, existe o querer de agora, também já feito, e isso era a certeza da vida que permite salvação, a solução pronta onde menos se espera. Helena escolheu ter a fibra, o tônus no sorriso, ainda que garimpado em duríssima escavação. Ela escolheu escolher.
Nem parecia a mulher da rebelião, ferindo seus dedos até os ossos nas grades e quebrando o punho na parede quando viu a companheira de cela morrer enforcada. Era tanto o que já havia tido, sem contar quando escapou das facadas mas teve o estilhaço de um vidro lhe rasgando o rosto. Ou o homem tentando molestá-la com a promessa de dois cigarros, a doença de cada verão, o parto da moça que viu a criança morrer no chão gelado, a comida fazendo vomitar três vezes no mesmo mês, o tumor sem tratamento da jovem que dizia não querer sucumbir, a goteira atormentando as noites, o ralo devolvendo o esgoto, baratas passando no teto, os sapatos roubados, dentes que doem, e a lembrança detestável do cheiro de colchões queimando no corredor, a fagulha lhe atingindo em um dos olhos sem piedade.
Mas no dia do fogo pode ver finalmente, muda de choque, que saindo dali também outro incêndio a esperava. A queimação por estar desprovida de toda proteção necessária caso visse a rua novamente. Conhecia o flamejar cruel de querer gritar já sabendo que todos desviariam.
Por isso os cuidados ao enfeitar a cela, pintar a prateleira dos vidrinhos, bordar o nome na fronha, apertar a alça da blusa. E na hora do banho ela reza pela moça bonita que em minutos voltará a ser imaculada, impecável e coberta de fragrâncias de frutas e flores.
Helena é pela manhã, sempre de novo, a flor de menina. Para todo efeito viva, de insuspeitável doçura morta.

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