O último carregador da enorme mudança
saiu e ela fechou a porta olhando para todas as caixas empilhadas, sem
preguiça. Uma retomada esperada por muito tempo, e então desejou essa sensação
de novidade e de nada pronto. O estado de tudo ainda por fazer era de tal forma
prazeroso que nem um brinde com a melhor das bebidas desse mundo estaria à
altura. O melhor para celebrar era olhar a bagunça, estar certa de que nada
seria como antes dali para frente. E ela olhou por horas, cuidou para que isso
pudesse de fato ser vivido, a demora na sensação. Arrumou bem no meio da sala o
tapetinho com duas almofadas para ali se instalar, esticada no meio das pilhas
de objetos encaixotados. As caixas não foram marcadas e ela não fazia a menor
ideia de onde havia pratos, discos, documentos, lâmpadas. Lâmpadas... a casa
ainda estava sem nenhuma. Procuraria um abajur assim que começasse a escurecer,
ainda não era hora. Ficou por ali sem comer, sem beber, só olhando os cantos
das paredes, a ideia de que tudo ficaria aconchegante.
Vida sem mudanças se torna não vida.
Deixar para trás é necessário. Renascimento, sem renascimento não somos muita
coisa. É de novas empreitadas que nos fazemos inteiros, de novos intentos nos
fazemos completos, pois não existe descoberta na estagnação. É preciso ruptura
para que possamos entender o que era antes de acontecer o agora. E ele não se
faz sem violência. Romper, corromper, deixar levar, abandonar, afastar, é
diferente de esquecer. A vida é proporcional à quantidade de não esquecimentos
que trazemos, e afirmar isso é grave demais. Sim, porque tanto nos apegamos à
ideia de guardar recordações, tanto achamos valoroso o cultivo da memória, como
respeito às nossas conquistas pregressas e aos nossos antepassados, que não
lembramos às vezes da legitimidade do esquecer. E ao perdermos essa legitimidade, deixamos
escapar que o lembrar e não ligar, é que é o pulo do gato. Parar de dar certas
importâncias. Difícil viver assim nessa bênção, mas pode ser uma lição da nova
ruptura. Caso para pensar hoje, em meio à bagunça, em meio às pilhas de coisas
que representam o conquistado, o adquirido, o que se seguiu às apreensões
interiores acumuladas por tanto tempo em sua vida ainda de jovem. Nada do que
está fora deixa de corresponder ao que está dentro. Essa mudança de casa era
uma mudança de casca, porque o corpo crescia e crescia a vontade de alguma
coisa que só na arrumação dos objetos ficaria mais clara para ela. De que
natureza afinal é toda essa movimentação, que foi assim tão necessária a
transferência de espaço externo?
Havia planos, coisas de trabalho,
sonhos de um amor diferente e profundo certamente, mas na nova organização dos
seus pertences, o inusitado saltaria aos olhos. Talvez por ver que deixara de
precisar de certos pertences, e por perceber, ao abrir uma dessas caixas, que
nem se lembraria de determinado item se ele não se apresentasse assim de
surpresa. Pode ser que demorasse a achar alguma coisa, e isso na hora lhe faria
imensa falta, e então teria medo, medo de ter perdido objetos imprescindíveis.
Agora o que se apresentasse como imprescindível seria de qualquer forma outra
bênção. Ela estaria de novo diante de novidade. Tudo novo, tudo transformado, e
qual a razão?
Essa mudança de espaço significa
concretização de plano antigo, tanto quanto julga antigo ter nascido e ter ganho
seu nome. Havia a coisa planejada desde sempre, e isso era ela mesma, a “pessoa
desde sempre”. Ela se encontra tanto consigo própria sentada no tapete e
olhando o nada pronto - como gosta de chamar sua casa de recém chegada - que
essa não é uma mudança qualquer.
Mesmo tendo vivido outras transições,
sabia que chegaria o dia em que a “transferência” adquiriria esse caráter. Era
a diferença. O querido é muito além do necessário, ou do que se dá simplesmente
porque a vida é assim. O querido vem às vezes com certo atraso no nosso
julgamento, mas isso apenas enquanto ainda não aconteceu. Porque na hora em que
finalmente o acontecimento vem, entendemos que o momento propício nunca tardou,
não falhou. A vida tem justiças além das nossas mazelas vividas a duras penas e
das quais poucos, tão poucos, escapam, e assim mesmo por pura distração. Penas
são democráticas, vêm para todos, mesmo com disfarces. Mas os que não as
conhecem não contam como estatística, não são parcela representativa de coisa
alguma nesta vida.
Vamos falar da justiça, e ela pensa
nessa palavra com gosto, porque hoje está justiçada, e para o bem. A bondade
lhe salta aos olhos neste dia especial. O dia de chegada, que também foi de
partida, hora em que ela foi. E poderia ficar parada a semana inteira, sem
comer e beber, nem se mover, ou nada, tamanha é a satisfação. Justiça, prazer,
realização, essas são as palavras que descrevem o começo no lugar novo, e ela
vai chamá-lo de casa.
Nessas circunstâncias, chamar um
abrigo de casa não é lugar comum. As outras casas que teve até hoje não tinham o
valor de invólucro de pessoa se fazendo. Ela se faz nesses tempos, mais do que
renasce, ou do que se redescobre. Há outra ela, bem melhorada e que pediu de presente.
Solicitou a si própria que viesse de novo, reapresentação em nova edição,
encadernação bem mais de luxo.
A palavra “tão” aparece a todo
momento. Tudo é “tão” que é tão fácil ficar mais feliz. Tão novo, tão cedo,
solar, sem mácula, tão harmonioso. E ela é tão ela, de novo e finalmente. Antes
e em outras mudanças comemorou, bebeu, e havia a música chave que tinha de ser
a primeira a tocar naquele ambiente recém inaugurado. Era quase superstição, quando
achava que reafirmar seu amor por determinada canção reavivava sua identidade. Se
fosse como antes, a esta altura estaria dançando com o copo de vinho nas mãos,
sentindo-se superadora de uma etapa a mais. Mudar de casa tem normalmente esse
espírito. No entanto dessa vez é diferente também nesse detalhe. Há um aspecto
da celebração que prescinde de qualquer gesto, qualquer coisa que, se
acontecesse, até profanaria a absorção do evento.
Estar. Não à toa ali será a sala de
estar. Nunca um lugar a fez tão estar. Estar tão. Ela hoje é tão. Hoje é a
plenitude a mais da plenitude, um além das coisas que são, e das que nunca nem
foram sonhadas. Escolher conta mais que tudo. E um dia escolhemos.
Muitas vezes sem perceber fazemos
nossa decisão começar a valer, e isso não está na mera determinação, como dizem
os otimistas, daqueles quânticos que acham que falar é vaticinar. Nem sempre.
As decisões que passam a valer e que vão de repente se apresentar como fato,
como o pronto, são aquelas que dependem de uma explosão. Essa explosão é
assunto para teses, é matéria de muitos anos de sistematização de muitos
conceitos para que seja explicável. Mas ela sabe no cerne, no espírito, do que
se trata, uma vez que foi com ela que o fato se deu. O que faz dessa mudança a
coisa mais importante, é que o deslocamento nasceu de um desejo de vida que só
pode começar agora, mas que foi fruto da tal explosão lá atrás, um dia. O
desejo do caminho novo se abrindo nasceu em um momento de tal pureza de sonho e
sentimento, que uma estrela disse sim, uma constelação se aliviou e um sol
expandiu tanto até depois se contrair como é comum nesses fenômenos.
No dia em que ela descobriu determinada
motivação em sua vida - sim, por acaso uma pessoa dessas que quando se
apresentam diante de nossos olhos nos fazem quase flutuar pela revelação de
beleza inigualável - houve como por mágica uma dessas explosões. Sentimento em
plenitude, tudo desligado de qualquer pensamento ou ato que maculasse a coisa
em si, a apreciação e a absorção daquilo. E a explosão foi essa culminação do
brilho da mente e do coração em perfeita sintonia, concordando que o observado,
despertando ideia nova de simplicidade e completude, era a perfeição em estado
mais desperto e esperto.
Então se deparou com o belo, e isso
nunca mais saiu dos seus ideais. Sintonizou nele e seguiu pelos anos afora.
Mesmo quando achava que se esquecia da beleza, aquilo estava lá. Era coisa
consumada, a explosão já havia se dado, e nada poderia ser feito além de
aceitar. Outros teriam desejado o mesmo? É certíssimo que sim, mas a explosão se
deu somente com ela e isso era fato. Estava agora olhando o não pronto com a
delícia de quem tem o pronto dentro, desde sempre. E sabe de uma coisa, sabe
que se foi capaz dessa tamanha pureza de intenções na direção de coisa tão
linda, é porque é uma felizarda digna do amor.
Há outra pessoa na sala ao lado
olhando o não pronto também. E a mudança dessa vez foi para ficar com ele. O
nascido era um porvir de superações e presentes anunciados pelo céu, que para
tanto, é chegada a hora. Viver tinha muito de justiça, pensa e repensa. Era só
isso, bem simples, e a coisa que sairia de dentro das caixas, entraria nelas,
transborda das janelas e vaza por debaixo das portas ali é a explosão ainda em
seu eco infinito e nunca arrefecido, pelo contrário, só intensificado no tempo.
Ela vai viver daqui para frente das
não dúvidas, dos não temores da consciência, da não falta de qualquer natureza.
Nasceu outra coisa nesta mesma vida, diante de seus olhos, e isso se desenhara
desde sempre dentro dos olhos, do seu céu particular.
A pessoa que também olha com singeleza
o não pronto na sala ao lado, subitamente faz um barulho. O som é por alguma
razão óbvia, um chamado. Tudo dele é um chamado. Ela vê que o companheiro fez
seu cantinho de contemplação do mesmo jeito. Para eles essa é a casa de um sem
fim de possibilidades, e assim mais uma explosão fecunda brota de outra sincera
pureza: a gratidão. Por tudo isso, essa é a casa do mais que pronto, morada do
tão amor.
De repente ele surge a seu lado, lhe entregando
uma lâmpada sem dizer nada. Ela pega a lâmpada e enrosca no fio pendente do
teto, reparando que é final de tarde. Nessa mesma hora conseguiu ver que assim,
de ação e claridade os seus dias seguiriam, para sempre.