Elenice só tinha um pensamento, uma
espécie de fé de que o sofrimento passaria. Perder um irmão para o tráfico do
jeito que perdeu, um garoto ainda, morrendo com cinco balas, três na cabeça.
Aquela mesma cabeça que planejava outra vida, que falava ingenuamente sobre ser
professor de capoeira, como seu ídolo, o vizinho ao lado que chegou a um grau
de excelência tão grande na arte, atraindo alunos de toda parte da cidade. A
comunidade era constantemente visitada até por gente rica, entrando em fila
para conseguir uma vaga na aula do Mestre. E o garoto então queria ser o futuro
Mestre, e por isso treinava, treinava.
A comunidade foi pacificada há pouco,
mas há um grupo querendo retomar seu lugar de vigilante das vidas ali, e era
para eles que o garoto trabalhava. Seu nome de batismo, José, mudou para
Pedrada, por ordem do seu superior. O apelido se baseava num acontecimento para
José sem importância, uma pedrada que deu em outro garoto no meio de uma briga
e que calou o adversário na hora. A fama estava feita. E assim ele recebeu a
alcunha.
A capoeira estava ficando para trás.
Envolvido com tantos afazeres, tantas ordens, tinha pouco tempo para pensar no
mestre, no trabalho, mas continuava dizendo em casa de seu futuro como
instrutor de muita gente. E ele seria respeitado e nunca o chamariam de
Pedrada.
Agora tudo era passado. Elenice tinha de
se virar sem as palavras de esperança do menino que quanto mais se encrencava,
menos sonhava. Vida nova para ela, sem sonho, mas com a dureza de quem tem
perseverança e jura que toda vez que for chorar, vai chorar sem abaixar a
cabeça, vai chorar erguida, firme, e seguir em frente.
Então que o ódio passe, ela implora. E
encontrar na paz a saída, acomodando seu peito de mulher corajosa para a
conquista sem sangue, e sim aquela que só depende da vontade e da capacidade de
levantar a cabeça na hora de verter as lágrimas. Mas Deus está vendo.
No emprego novo ela não fala do vivido
recentemente. Os colegas só sabem dela, ser muito calada e séria, muito
reservada e misteriosa, pois não ri à toa na hora do descanso, não quer nada.
Antes de dormir tenta pacificar a alma,
faz compressas de gelo na cabeça, porque é a hora de lembrar do irmão e do
acontecido. O crime bem na sua frente, os tiros respingando sangue e um pedaço
de cérebro bem na sua cara. Sim, ela estava presente e foi numa invasão à sua
casa que pegaram o menino. Ele tinha aprontado das boas, mas quem pode dizer
que aquilo era justo?
O gelo na testa, a música que ganhou de
um parente distante, dizendo ser bom para acalmar os pensamentos.
Era mesmo. Não sabia de onde vinha aquela música, mas era tudo o que o irmão
mais detestava, calma demais, de melodia cujas frases não terminavam nunca. Ela
acompanhava o desenho das notas, tinha sensibilidade para perceber o que
acontecia, e entendeu o conselho do parente.
Pela manhã tomava seu café com uma
presteza que dava a impressão de ser aflição e não pressa. Mas ela o fazia
orando, pedindo, e isso acalmava de novo. Estava conseguindo aplacar seu
sentimento de revanche, seu sentimento de indignação. Com sorte, até o final
daquele ano seria de novo uma pessoa normal, e dormiria facilmente, acordaria
ouvindo mais daquele tipo de música que o irmão tanto detestava e seria a
própria calmaria.
Mas e o corpo? Como reagia o corpo
depois de ver destroços da carne da sua carne? Ela se tornara mais troncuda,
sem se exercitar. Uma coisa curiosa isso, mas seus músculos saltavam dos ossos.
Comia um pouco mais e com voracidade, agora tinha a força e isso também parecia
uma reação à alguma violência. Ela se fortificava do jeito que podia, seu corpo
fazia tudo sozinho, crescia sem ser como resposta a um estímulo apropriado, um
desejo seguido do trabalho para crescer. Ela acordava mais masculinizada a cada
dia, era uma Elenice com quem ninguém se meteria a besta.
O pessoal da comunidade respeitava a
mulher de fibra que era ela. Nem gritou no dia do acontecido. E grito de mulher
era o que mais se ouvia naquele lugar. Cada adolescente morto por causa da
polícia ou do próprio tráfico rendia dias e mais dias de gritos de mulheres
desesperadas. Mães e tias, irmãs e esposas, todas gritavam, se descabelavam,
era o jeito certo de se manifestar. Ou não era? Para ela, jamais. Não dera um
pio. Gritou para dentro e isso foi o estopim para que seu corpo reagisse se
fortalecendo junto com seu pensamento de resistência. As lágrimas ainda corriam
em seu rosto voltado para cima, o tórax firme, nada de se curvar.
O tempo passa, “talvez no final do ano”,
pensa. “Ainda me livro dessa sensação”. Era raiva? Era o quê? Ninguém poderia
dizer, simplesmente porque ninguém podia fazer ideia de nada. Ela calada,
resignada, levando a vida normalmente.
Mas houve uma noite em que a música
calma parou. A mulher desligou o som e jogou para longe o gelo. Apagou a luz e
virou-se para o lado, cansada também daquele ritual. Sentia revirar no peito
uma força diferente, o coração mais acelerado, a cama esquentando e pedindo
para que ela se levantasse. Virou-se novamente, tentou se acomodar. Nas pernas
um calor subia devagar, os músculos enrijeciam e sofriam de uns pequenos
espasmos como se fosse a reação a um longo dia de exercícios exaustivos. Mas
seu dia havia sido aquele da mornidão de sempre. Trabalho e comida, silêncio e
olhares sérios para tudo e todos.
No seu estômago tudo se revirava. O
corpo pedia remédios, estava entrando numa espécie de colapso indescritível
nunca antes experimentado. O que poderia tomar para melhorar? Aquilo não era
normal. Pensou em rezar, mas estava tão exasperada que sentiu profundo desprezo
também pela oração de todos os dias. “Quanta porcaria”, pensou,
“quero-que-vá-tudo-para-o-inferno”, disse articulando bem as palavras. Agarrou-se
na cabeceira da cama e levantou-se de supetão. Um movimento brusco e estava em
pé, em pé como se forçara a ficar desde o acontecido. Agora, com tudo revirando
por dentro, ela queria dizer seu nome, Elenice, e repetir Elenice cada vez
mais, pois isso dava prazer e aliviava um pouco os sintomas do desespero. A
repetição fazia algum sentido no meio daquele turbilhão. Ela teve de se apoiar
de novo, estava tonta.
Como se entorpecida, dizia:
Elenice, Elenice... e horas se passaram com esse mantra em
diferentes intensidades, enquanto cruzava o quarto e a sala se segurando
nos móveis e sentindo sua náusea e suas palpitações também mudarem de
intensidade, conforme seu nome era dito, como um chamado para a
realidade.
Nada mais de música ou gelo para esfriar
a cabeça, nada disso. Ela queria explodir feito o irmão, deixar as queixas
nunca feitas encontrarem seu caminho de expressão.
Bebeu um copo de água gelada em uma
golada só. Engasgou e riu ao mesmo tempo, babando de embriaguez. Esperou
circulando, até que o dia chegasse. Esperou porque a sensação que lhe tomara
por inteiro era de certa forma uma lição da qual andava precisando há tempos.
Estava tudo errado em sua vida e isso agora já era claríssimo.
E eis que clareou tudo mesmo e ela nem
se vestiu. Tomou mais água e comeu um pão com a fúria que era comum. Mas seu
estômago não melhorava. Algo por dentro subia e descia vertiginosamente como se
um corpo estranho tivesse se apossado dela. Os músculos das pernas em
prontidão, os músculos dos braços, rijos, o coração dando pulos, sim, tudo
apontava a um só caminho, a rua. E ela saiu como estava, os cabelos para cima
como quem vira um fantasma, mas o fantasma nunca seria mais assustador do que
ela mesma. Foi até a esquina e lá encontrou o que procurava. Um dito “homem de
bem”.
Empurrou o homem pelo peito e o derrubou
facilmente, pois seu gesto veio tão inesperado e não havia defesa possível. O
homem caiu como um corpo morto antes mesmo do próximo golpe. Um soco de mão
fechada bem no centro de seu rosto, segurando em seguida seus cabelos e batendo
com a cabeça da vítima no chão, várias vezes, com a força de um homem cem vezes
mais forte que qualquer um ali presente. As pessoas ao redor não podiam fazer
nada, estarrecidas e se perguntando o que aquele homem teria feito.
Só ela sabia o que ele teria feito. E
tudo ou nada dava na mesma, o que importava era que “homens de bem” como ele,
para ela não significavam nada diante da realidade da vida que não dá chances
para ninguém que não tenha nascido de outros “homens de bem”. Seu irmão nunca
poderia ser o mestre que sonhara, sua vida era guiada pelo mestre do tráfico
porque ele não tinha como escapar da sina imposta em nome do bem estar dos
filhos dos homens de bem, que precisavam que alguém morresse para que pudessem
praticar seus pequenos delitos sem jamais alguém se importar. Aquele homem
também era cliente de seu irmão, e o que fazia àquela hora, ali, enfiado no
morro? Ela nunca se sentiu com tanta razão.
Continuou batendo com a cabeça dele no
chão tantas vezes, que seus olhos escureceram de um vermelho que não sabia de
onde saía, e nem se era dela ou dele. Arranhou seu rosto com toda força e com
unhas desconhecidas, em seguida cravando as garras nos olhos, o golpe que mais
lhe deu satisfação. Enfiou seus dedos com vontade nos olhos do homem até
arrancá-los com a força com que se arranca o coração de quem matou o seu
coração. Ter os olhos daquele moribundo por entre os dedos era o prazer que a
libertaria para sempre da necessidade do gelo esfriando seus pensamentos negros
e quentes. Ela estava se libertando.
Finalmente, duas pessoas se manifestaram
e ela foi agarrada e retirada de cima daquele homem, talvez morto, esparramado
no chão. E ela não viu mais nada. Desmaiou e sentiu na queda o prazer da morte
quando esta chega na hora de uma dor não controlável. Acordou muito tempo
depois, no corredor do que parecia ser um hospital. Viu apenas que ninguém
percebera seu despertar, e era bom mesmo. Enquanto ia caindo novamente no sono
teve a plena certeza de que agora nunca mais seria calada e misteriosa. Não
importava para onde a levariam, ou se o seu destino seria um cárcere qualquer.
Sabia que a sua verdade de ser o que era, agora havia encontrado um lugar digno
no mundo e que o respeito havia sido retomado. Ninguém a deixaria mais de
estômago embrulhado. Ela finalmente passara dessa fase angustiante onde tudo o
que vinha tinha de ser engolido sem fome. Viu que a fome verdadeira estava
saciada, a fome de algo que antes o mundo não estava lhe proporcionando. Dormiu
feliz e apaziguada. Nem queria saber se matou ou não o homem, se a sensação de
ter seus olhos por entre os dedos era real ou uma alucinação. Só queria mesmo
era aquele sono dos justos. Agora havia a Elenice do crime. Mulher única.
Ninguém se igualava a ela assim como nada se igualava ao que já tinha visto nesta
vida. Sentiu a paz. Sem música ou gelo, sem rezar e sem pedir nada. Ela já não
precisava de nada. Só precisava deixar a vida passar.
Retomando o fôlego aqui...Maravilhoso texto!!! Obrigada, Patrícia! Para mim, um retumbar de sentidos, revirando a existência numa convulsão rara de beleza. Absoluta e necessária à literarura ... aos dias atuais. Abraço imenso!
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