modular é necessário







sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A casa



O último carregador da enorme mudança saiu e ela fechou a porta olhando para todas as caixas empilhadas, sem preguiça. Uma retomada esperada por muito tempo, e então desejou essa sensação de novidade e de nada pronto. O estado de tudo ainda por fazer era de tal forma prazeroso que nem um brinde com a melhor das bebidas desse mundo estaria à altura. O melhor para celebrar era olhar a bagunça, estar certa de que nada seria como antes dali para frente. E ela olhou por horas, cuidou para que isso pudesse de fato ser vivido, a demora na sensação. Arrumou bem no meio da sala o tapetinho com duas almofadas para ali se instalar, esticada no meio das pilhas de objetos encaixotados. As caixas não foram marcadas e ela não fazia a menor ideia de onde havia pratos, discos, documentos, lâmpadas. Lâmpadas... a casa ainda estava sem nenhuma. Procuraria um abajur assim que começasse a escurecer, ainda não era hora. Ficou por ali sem comer, sem beber, só olhando os cantos das paredes, a ideia de que tudo ficaria aconchegante.

Vida sem mudanças se torna não vida. Deixar para trás é necessário. Renascimento, sem renascimento não somos muita coisa. É de novas empreitadas que nos fazemos inteiros, de novos intentos nos fazemos completos, pois não existe descoberta na estagnação. É preciso ruptura para que possamos entender o que era antes de acontecer o agora. E ele não se faz sem violência. Romper, corromper, deixar levar, abandonar, afastar, é diferente de esquecer. A vida é proporcional à quantidade de não esquecimentos que trazemos, e afirmar isso é grave demais. Sim, porque tanto nos apegamos à ideia de guardar recordações, tanto achamos valoroso o cultivo da memória, como respeito às nossas conquistas pregressas e aos nossos antepassados, que não lembramos às vezes da legitimidade do esquecer.  E ao perdermos essa legitimidade, deixamos escapar que o lembrar e não ligar, é que é o pulo do gato. Parar de dar certas importâncias. Difícil viver assim nessa bênção, mas pode ser uma lição da nova ruptura. Caso para pensar hoje, em meio à bagunça, em meio às pilhas de coisas que representam o conquistado, o adquirido, o que se seguiu às apreensões interiores acumuladas por tanto tempo em sua vida ainda de jovem. Nada do que está fora deixa de corresponder ao que está dentro. Essa mudança de casa era uma mudança de casca, porque o corpo crescia e crescia a vontade de alguma coisa que só na arrumação dos objetos ficaria mais clara para ela. De que natureza afinal é toda essa movimentação, que foi assim tão necessária a transferência de espaço externo?

Havia planos, coisas de trabalho, sonhos de um amor diferente e profundo certamente, mas na nova organização dos seus pertences, o inusitado saltaria aos olhos. Talvez por ver que deixara de precisar de certos pertences, e por perceber, ao abrir uma dessas caixas, que nem se lembraria de determinado item se ele não se apresentasse assim de surpresa. Pode ser que demorasse a achar alguma coisa, e isso na hora lhe faria imensa falta, e então teria medo, medo de ter perdido objetos imprescindíveis. Agora o que se apresentasse como imprescindível seria de qualquer forma outra bênção. Ela estaria de novo diante de novidade. Tudo novo, tudo transformado, e qual a razão?

Essa mudança de espaço significa concretização de plano antigo, tanto quanto julga antigo ter nascido e ter ganho seu nome. Havia a coisa planejada desde sempre, e isso era ela mesma, a “pessoa desde sempre”. Ela se encontra tanto consigo própria sentada no tapete e olhando o nada pronto - como gosta de chamar sua casa de recém chegada - que essa não é uma mudança qualquer.

Mesmo tendo vivido outras transições, sabia que chegaria o dia em que a “transferência” adquiriria esse caráter. Era a diferença. O querido é muito além do necessário, ou do que se dá simplesmente porque a vida é assim. O querido vem às vezes com certo atraso no nosso julgamento, mas isso apenas enquanto ainda não aconteceu. Porque na hora em que finalmente o acontecimento vem, entendemos que o momento propício nunca tardou, não falhou. A vida tem justiças além das nossas mazelas vividas a duras penas e das quais poucos, tão poucos, escapam, e assim mesmo por pura distração. Penas são democráticas, vêm para todos, mesmo com disfarces. Mas os que não as conhecem não contam como estatística, não são parcela representativa de coisa alguma nesta vida.

Vamos falar da justiça, e ela pensa nessa palavra com gosto, porque hoje está justiçada, e para o bem. A bondade lhe salta aos olhos neste dia especial. O dia de chegada, que também foi de partida, hora em que ela foi. E poderia ficar parada a semana inteira, sem comer e beber, nem se mover, ou nada, tamanha é a satisfação. Justiça, prazer, realização, essas são as palavras que descrevem o começo no lugar novo, e ela vai chamá-lo de casa.

Nessas circunstâncias, chamar um abrigo de casa não é lugar comum. As outras casas que teve até hoje não tinham o valor de invólucro de pessoa se fazendo. Ela se faz nesses tempos, mais do que renasce, ou do que se redescobre. Há outra ela, bem melhorada e que pediu de presente. Solicitou a si própria que viesse de novo, reapresentação em nova edição, encadernação bem mais de luxo.

A palavra “tão” aparece a todo momento. Tudo é “tão” que é tão fácil ficar mais feliz. Tão novo, tão cedo, solar, sem mácula, tão harmonioso. E ela é tão ela, de novo e finalmente. Antes e em outras mudanças comemorou, bebeu, e havia a música chave que tinha de ser a primeira a tocar naquele ambiente recém inaugurado. Era quase superstição, quando achava que reafirmar seu amor por determinada canção reavivava sua identidade. Se fosse como antes, a esta altura estaria dançando com o copo de vinho nas mãos, sentindo-se superadora de uma etapa a mais. Mudar de casa tem normalmente esse espírito. No entanto dessa vez é diferente também nesse detalhe. Há um aspecto da celebração que prescinde de qualquer gesto, qualquer coisa que, se acontecesse, até profanaria a absorção do evento.

Estar. Não à toa ali será a sala de estar. Nunca um lugar a fez tão estar. Estar tão. Ela hoje é tão. Hoje é a plenitude a mais da plenitude, um além das coisas que são, e das que nunca nem foram sonhadas. Escolher conta mais que tudo. E um dia escolhemos.

Muitas vezes sem perceber fazemos nossa decisão começar a valer, e isso não está na mera determinação, como dizem os otimistas, daqueles quânticos que acham que falar é vaticinar. Nem sempre. As decisões que passam a valer e que vão de repente se apresentar como fato, como o pronto, são aquelas que dependem de uma explosão. Essa explosão é assunto para teses, é matéria de muitos anos de sistematização de muitos conceitos para que seja explicável. Mas ela sabe no cerne, no espírito, do que se trata, uma vez que foi com ela que o fato se deu. O que faz dessa mudança a coisa mais importante, é que o deslocamento nasceu de um desejo de vida que só pode começar agora, mas que foi fruto da tal explosão lá atrás, um dia. O desejo do caminho novo se abrindo nasceu em um momento de tal pureza de sonho e sentimento, que uma estrela disse sim, uma constelação se aliviou e um sol expandiu tanto até depois se contrair como é comum nesses fenômenos.

No dia em que ela descobriu determinada motivação em sua vida - sim, por acaso uma pessoa dessas que quando se apresentam diante de nossos olhos nos fazem quase flutuar pela revelação de beleza inigualável - houve como por mágica uma dessas explosões. Sentimento em plenitude, tudo desligado de qualquer pensamento ou ato que maculasse a coisa em si, a apreciação e a absorção daquilo. E a explosão foi essa culminação do brilho da mente e do coração em perfeita sintonia, concordando que o observado, despertando ideia nova de simplicidade e completude, era a perfeição em estado mais desperto e esperto.

Então se deparou com o belo, e isso nunca mais saiu dos seus ideais. Sintonizou nele e seguiu pelos anos afora. Mesmo quando achava que se esquecia da beleza, aquilo estava lá. Era coisa consumada, a explosão já havia se dado, e nada poderia ser feito além de aceitar. Outros teriam desejado o mesmo? É certíssimo que sim, mas a explosão se deu somente com ela e isso era fato. Estava agora olhando o não pronto com a delícia de quem tem o pronto dentro, desde sempre. E sabe de uma coisa, sabe que se foi capaz dessa tamanha pureza de intenções na direção de coisa tão linda, é porque é uma felizarda digna do amor.

Há outra pessoa na sala ao lado olhando o não pronto também. E a mudança dessa vez foi para ficar com ele. O nascido era um porvir de superações e presentes anunciados pelo céu, que para tanto, é chegada a hora. Viver tinha muito de justiça, pensa e repensa. Era só isso, bem simples, e a coisa que sairia de dentro das caixas, entraria nelas, transborda das janelas e vaza por debaixo das portas ali é a explosão ainda em seu eco infinito e nunca arrefecido, pelo contrário, só intensificado no tempo.

Ela vai viver daqui para frente das não dúvidas, dos não temores da consciência, da não falta de qualquer natureza. Nasceu outra coisa nesta mesma vida, diante de seus olhos, e isso se desenhara desde sempre dentro dos olhos, do seu céu particular.

A pessoa que também olha com singeleza o não pronto na sala ao lado, subitamente faz um barulho. O som é por alguma razão óbvia, um chamado. Tudo dele é um chamado. Ela vê que o companheiro fez seu cantinho de contemplação do mesmo jeito. Para eles essa é a casa de um sem fim de possibilidades, e assim mais uma explosão fecunda brota de outra sincera pureza: a gratidão. Por tudo isso, essa é a casa do mais que pronto, morada do tão amor.

De repente ele surge a seu lado, lhe entregando uma lâmpada sem dizer nada. Ela pega a lâmpada e enrosca no fio pendente do teto, reparando que é final de tarde. Nessa mesma hora conseguiu ver que assim, de ação e claridade os seus dias seguiriam, para sempre.

Nenhum comentário:

Postar um comentário