Primeira parte - A Excelência
Pronto, pesquei. Uma verdade escondida
que mudou a direção dos pensamentos do dia. Hoje conversando com uma amiga, ela
me contava do filme onde uma mulher descobria ter apenas mais oito semanas de
vida, e exclamei com tanta naturalidade: que maravilha! E eu mesma fiquei
surpreendida demais. Minha amiga não comentou nada. O diagnóstico para a inveja
tão exclamativa em relação ao triste destino da personagem do filme é meu
cansaço sem nome, cansaço não de ofício, mas sim de existência interior para a
qual não tenho visto correspondência nas coisas externas. A espiritualidade tem
sido muito exercitada por aqui, mas a quietude, amiga desde sempre, não tem
trazido a paz de costume. Só questionamentos que nunca deságuam em campos mais
esclarecidos, propiciadores de dissolução das dúvidas e dívidas com o próximo.
É período de acumulação, e tudo que chega apenas fica, fica, faz mais peso e
ocupa mais espaço. Eu tenho de me livrar de coisas, para não querer mais me
livrar da vida, como me pareceu ao exclamar tão favoravelmente ao enredo do
filme terrível.
Com calma eu analiso o passo mais
recente e sei da vantagem de saber tomar decisões nesses momentos cruciais,
onde a razão importa menos do que a coragem de dizer sim ou não, de supetão,
quando o momento de saltar se apresenta. O saltar. A chance de ruptura, mesmo
parecendo loucura. E eu sou uma que rompe, ousa dizer o sim e o não da
dissolução, do desmoronamento que pode me levar além de onde estou. Nada a
declarar a quem não me entender de pronto. Mentira, tenho paciência, e tal
preciosa matéria extraio também do fogo do meu talento. Serei sucinta, direta e
sincera. E este é o meu momento. Meu. Ele é meu. Seguro o tempo desse
acontecimento e com ele espero fazer algo por mim mesma. Nessa volta por dentro
acharei o novo que no entanto sempre esteve aqui. Nada é por acaso e se largo
algo, se abro os dedos e deixo o pássaro voar, é porque isso estava escrito, e
escrito por mim mesma, a que inventa tudo, a que acha na lama ou na delícia
pepitas garimpadas com suor de alma. Eu vou ao meu garimpo hoje sem os
instrumentos de lavagem das pedras duras e feias. Vou ao meu local de tirar do
chão a preciosidade, às vezes da terra seca, às vezes de pedra brutalmente
cavada com minhas unhas de princesa, mas vou apenas olhar. E sei da aridez de
se viver cultivando no agreste, viver do garimpo no lodo, da pesca no mangue, e
de matar a sede com a água do poço cavado bem fundo. Tudo muito áspero e
dramático? Nada. Minha vida é feita de saber dosar o drama, e a tragédia disso
é ele não se dosar jamais na tranqüilidade. Somos criaturas que atravessam
vales de sombras porque nas sombras estão as ideias, não há jeito. De
luminosidade fazemos nosso caminho apenas no depois dos achados mais
importantes, porque o durante é de caos, escuridão e medo. Medo de nunca achar
nada melhor, medo de não ter mais as unhas que cavam e de não ter mais a
sustentação na hora de escalar a pedra mais alta que nos desafia, e quando
pressentimos o tesouro do dia lá em cima. O mesmo se dá para baixo, nos abismos
que tememos não termos a disposição de espírito para mergulhar. Nada assusta
mais do que não ter coragem suficiente, o mesmo que então não merecer tirar a
espada da pedra. A coragem é nossa matéria prima, antes de qualquer outra a se
apresentar. Queremos merecer mais do que ninguém, queremos a glória da ciência
que desvenda, desvenda o destino e clareia a trilha nos outros vales, e isso
para variadas multidões. Queremos dizer às multidões do caminho seguro e firme,
onde o chão jamais cederá. Somos artistas e o que sabemos é de vidas imbuídas
de missões, de gritos precedendo as grandes calamidades como que alertando às
almas afins de que fomos à frente, e sabemos indicar a direção mais reta até a
cobiçada grandeza de espírito. Já fomos e voltamos pelos campos do conhecimento
adquirido dando a força do corpo como escudo para os males que há tanto a
humanidade cansou de ver e se desviar por pura aflição, a pequeneza da qual
todos se esquivam tanto, que pretendem ignorar com total afinco, fingem nem
tomar conhecimento. Somos os arautos da libertação para aqueles que não dormem
e não sabem, somos os gladiadores matando as feras que matariam os mais
sensíveis. E assim eles podem se aproximar melhor da pedra, quando querem. E
ela já está polida, carregada da proteção da beleza. A beleza é nosso papel, e só por ela estamos
aqui.
Maledicência e morte. Dificuldade e
superação. Redenção pela simples crença de que quanto maiores os pecados
inspecionados maior será a ventura de ter o que dizer ao próximo. Por isso
procuramos no ser humano seu lado mais flagrantemente desumano, o mais cruel
afirmando nada ter visto de errado no momento em que matava seu semelhante com
o olhar de desprezo por sua maior agonia. É dessa invasão na alma do mal que se
explica nossa incrível capacidade de doação, porque dói presenciar e narrar
mediocridades. O medíocre nos agride e nem por isso passamos direto por ele. Ao
contrário, vamos ter com ele e o interpelamos nas profundezas das razões mais
amargamente obscuras para que suas ações se deem tão distantes da graça que
desejaríamos proclamar como definitiva na vida de todos nós. Mas da miséria
dele tiramos o exemplo da superação ou talvez a misericórdia de quem olha e
admite uma existência diversa. É nossa a imensa dor e tantas vezes,
alquebrados, pedimos clemência por ter de ver tamanha brutalidade na realidade
de existir do começo ao fim, sem pausa e sem tréguas. Existir neste mundo e ser
uma pessoa. A tarefa magnânima. E juramos que estamos aqui para facilitar as
coisas. Que assim seja.