O que se acredita ser a grande liberdade individual não passa de uma forma bastante iludida e primária de exercer o poder de consumo, este já implantado na vida de todos nós com uma pré-programação de como e quando deve ser exercido. E essa programação é vinda de instâncias que também nos iludimos quando julgamos saber completamente quais são. Zigmunt Bauman, em seu livro "Vida para Consumo - a transformação das pessoas em mercadoria", fala das sensações enganosas de poder que o sistema de relações mediadas pelo computador nos oferece. O que o mundo da comunicação virtual dá em sensação de poder de escolha, escolha sobre com quem falar, quem chamar para dentro do círculo mais privado, o que escolher em produtos para se adquirir, na verdade é um exercício não da escolha sobre o que se vai possuir, e sim a facilidade com que é possível desistir delas depois, segundo a sua observação. Quando parece que tudo está ao seu alcance só com o toque sobre um ícone em uma tela, a grande obsessão pela troca já está de tal forma embutida em seus mais arraigados preceitos de conduta, que tudo o que por um segundo deixa de preencher os requisitos básicos daquilo que forma uma identidade que liga apreciavelmente um sujeito a determinados grupos, já está fadado a desaparecer ao toque simples de uma tecla de substituição. E é também assim nas relações de afetividade entre pessoas, como conseqüência de um aprendizado que sofremos pelo desapego aos objetos que adquirimos, às estórias passadas às quais renegamos, ou seja, pela maneira como nos dirigimos a tudo sempre como sujeitos consumidores, sem perceber.
Vivemos uma vida em que tudo se torna obsoleto muito rapidamente, e sinto que o imediatismo e a urgência de se viver "aproveitando" o momento presente é uma paranóia que apenas faz temer o já vivido e também qualquer projeção sobre o que está por vir, como se isso representasse não um caminho de autoconhecimento e sim uma fuga da realidade. Nesse contexto da obsessão exclusivista pelo instante presente, o reconhecimento da importância de uma experiência vivida é tido quase como um culto mórbido sobre matérias mortas, e qualquer anseio sobre o futuro é como almejar o improvável em detrimento de sentir o chão sólido ou ter referências fixas do mundo.
E o desprezo às coisas e às histórias pregressas de vida vira desprezo pelo próximo. Não é à toa que tanta gente agora esteja se deparando com uma crescente desabilidade em estabelecer vínculos reais, aqueles onde as pessoas se confrontam em plenitude, sem a tecla ágil que promove a desconexão rápida em caso de qualquer desagrado.
Patricia Maês
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ResponderExcluirPatrícia,adorei teu texto.
ResponderExcluirInfelizmente sou obrigada a concordar, que as relações humanas estão cada vez mais liquídas.
Bjo
Raquel Anastásia
Patrícia,
ResponderExcluirO Marcelo Novaes fez-me essa ponte.
Chego aqui e vejo um conteúdo tão amplo de arte de mãos dadas com humanidade.
Este seu texto devia estar em salas de aula.
"Eu tenho medo do medo que as pessoas têm..."
E essa coisificação vem também do medo do outro, do medo da vida.
Beijos.
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Katyuscia
Nunca vi nada tão certo como - bom, o que você diz, ou o que o Bauman diz :-). Sim, tudo é agora descartável - e o lixo emocional e afetivo que isso gera nos afeta muito mais duramente do que o lixo físico do celular ou do carro trocados.
ResponderExcluirEsses somem, até da memória; os outros, não. Vão emporcalhar outros lugares (e pessoas); a "liquidez" de que fala Bauman é, para mim, um tipo de sujeira da qual não há como se limpar. Nem sujando quem está ao lado.
Um aspecto pouco pensado disso é o da memória - como certas coisas "não devem ser lembradas" em tempos de "liquidificação". E é um dos pontos fulcrais...