modular é necessário







segunda-feira, 21 de junho de 2010

aos vinte anos - histórias de alunos




Eis que surge para mim uma vez, uma moça de vinte anos querendo uma professora de música. A moça se apresentou da mesma maneira que todos costumam se apresentar, querendo antes de tudo conversar, falar de suas inúmeras dúvidas a respeito da compra de seu instrumento. Situação rotineira, o professor dar indicações sobre como escolher um bom violino a alguém que ainda não conhece nada a respeito.

Mas aos poucos a conversa foi tomando um rumo que deixava claro que para aquela pessoa, o fato de estar ali falando comigo era quase um ato perigoso, uma coisa que poderia a qualquer momento se revelar como um compromisso do qual nenhuma de nós poderia mais desistir. Nunca mais. Tudo parecia ser tão definitivo para ela, claramente amedrontada, que eu acabei também apreensiva e sugeri que o melhor seria ter cautela antes de empreender gastos.

Em seguida a moça quis saber se tocar violino faz alguém mais alegre ou mais triste, mais "para fora" ou mais "para dentro", segundo suas palavras. Expliquei que por mais que o aprendizado de qualquer coisa nova transforme normalmente as pessoas, e que apesar da música ser extremamente eficiente no que diz respeito a revelar aspectos emotivos e outras sensibilidades, eficiente em estimular novos processos cognitivos, toda mudança seria sempre controlável, e que, se é verdade que lidar com a percepção voltada para os sons de fato ativa áreas antes adormecidas no cérebro, não ocorreria nenhuma mudança drástica na sua personalidade só por causa do começo na prática de um instrumento. Avisei que no máximo, o que ocorreria em curto prazo seria a ampliação da sua capacidade de concentração, e da disciplina para conciliar o estudo e outras atividades, se ela assim o desejasse. Mas a moça insistia que havia mais, até que entendi que a questão maior entre todas as suas dúvidas era a respeito do vínculo entre nós duas. Enquanto experimentava maneiras de segurar o instrumento, e que eu ia orientando, vi que o fato ter sido tocada na mão já foi para ela uma experiência extremamente inusitada. Tanto que indagou se seria possível que por causa das aulas de música alguém se tornasse mais natural em relação ao contato físico, já que isso ocorre com freqüência entre professor e aluno.

Depois de ir embora convencida por mim, obviamente, de que não era hora de começar nada, ela telefona dias depois, querendo dicas sobre um violino elétrico. Expliquei que não era possível começar a estudar no violino elétrico, falei das questões de dinâmica que só se pode trabalhar no instrumento acústico, etc... e ela pareceu compreender. Uma noite, e bem tarde da noite, atendo uma ligação dessa mesma moça dizendo-se muito preocupada e precisando demais avisar-me que caso começasse a ter aulas, faria absoluta questão de aprender apenas músicas alegres, coisas que "me joguem pra cima", como ela mesma colocou, e completando o pensamento com a advertência de que "nada que remete à melancolia costuma fazer bem ao meu espírito".

Bom, a esta altura eu já havia percebido o tamanho da encrenca que seria tentar ensinar qualquer coisa a uma pessoa tão complicada, e com a maior das paciências tive de lhe dizer que então infelizmente não seria possível, porque eu apenas trabalho com músicas melancólicas e exercícios sombrios. Tive de dizer a ela que a melancolia faz parte da vida, e que ela jamais poderia entender a música se não conseguisse entrar em contato com esse lado da sua personalidade, que certamente existia e não era aceito. A moça tentou argumentar, deu uma série de exemplos de músicas "alegres" e que a jogavam "para cima", mas mesmo assim eu disse que não seria possível e encerrei nosso contato ali.

Nem há muito o que analisar dessas três aparições da garota. Os fatos falam por si e é explícito o quanto as pessoas estão acostumadas com contatos superficiais, alimentando depois idealizações exageradas em qualquer oportunidade de quebra dessa regra em suas convivências em que o contato próximo, o trato de assuntos que remetem a sensações, percepções de coisas subjetivas, é tão escasso. Outra coisa é a recusa a tudo que não tenha retorno imediato. Na vez em que falamos sobre a impossibilidade de se começar a estudar violino com um instrumento elétrico ela se mostrou bastante decepcionada, e confessou que já estava planejando fazer gravações. Outra coisa a se observar é que ingressar em alguma atividade que já insira a pessoa num novo grupo e que dê sensação de pertencer a alguma nova categoria entre os seres humanos, como era a visão dessa garota sobre o mundo da música, já causa medo, como se o estilo fugidio e com alertas de segurança que permite que se dê a qualquer momento um passo atrás fosse ameaçado, no caso de uma atividade onde ao se ingressar já é necessário desembolsar uma quantia considerável de dinheiro. Ou seja, tudo conspira para que as melhores escolhas do momento sejam aquelas sem grandes compromissos, sem grandes alterações no estilo de vida, ainda que às vezes as pessoas desejem ter suas personalidades "incrementadas" e alimentem a respeito de qualquer novidade em suas vidas, que essas novidades possam quase proporcionar uma troca de identidade, fetiche tão mal resolvido na cabeça da maioria.

O comportamento ansioso que essa moça apresentou, um comportamento amedrontado ao mesmo tempo que visivelmente desejoso de algo que significasse uma transformação sem precedentes na sua vida, chegou a ser assustador e também digno de um grande pesar, pelo tanto de incoerência que escancarava. Uma pessoa tão sem referência, que aos vinte anos não tem a menor idéia do que combina ou não, com o seu jeito "para dentro" ou "para fora" de ser.
Patricia Maês

2 comentários:

  1. patricia...é interessante como você ligou esses dois textos pelo viés do medo e da incompreensão. no primeiro, fica clara a necessidade de se olhar para dentro e procurar a essencia que acalma e conduz a uma postura mais tranquila e concentrada...no segundo o exemplo de total falta de conexão entre as necessidades essenciais e a realidade, revelando uma ansiedade que tudo deturpa e engana...fazendo do aprendizado lento e constante uma tortura a ser evitada a todo custo.
    eu acredito que o estudo sério de um instrumento musical seja essencial na formação das pessoas, tanto pela ação benéfica da música em si como pela percepção por vias sensoriais, de como a organização mental e a concentração necessarias para esse estudo, trazem um grande aprendizado de vida.
    fiquei feliz de conhecer um pouco melhor de você e da maneira como pensa.
    parabéns pelo blog inteligente que provoca a reflexão.
    bjs

    caito

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  2. Não sou terapeuta, mas parece que há na tua quase-aluna um problema de "sombra", no jargão junguiano; parece que ela quer e não quer ver algo de si, e buscou isso na música como poderia ter buscado noutra atividade qualquer.
    Quem sou eu para julgar, até porque muitas vezes dá certo, e acho que atividade que organizam a mente (música, xadrez, esportes em geral) prestam-se bem à isso. O problema é o caráter descartável com que ela encarou tudo desde o começo, não é?
    "Felicidade instantânea" - e você postou algo interessante mas no qual evito tocar com outros: aos 20, eu já tinha *esse* tipo de dúvida sanado. Mudei em muitas coisas, mas nunca busquei alívio imediato em atividades que exigissem tal grau de comprometimento - exatamente por mexerem com coisas sombrias em relação às quais ou se sabe o que está fazendo, ou é melhor deixar para olhar depois.
    No momento, tenho uma candidata a orientanda que cismou que queria ser judia e, sem ter amenor noção do que estudamos no grupo, está *desesperada* para entrar. Já sei que é encrenca, não vai entrar - mas é assustador! Mesmo que eu fosse capaz de tornar alguém judeu (o que iria requerer a circuncisão, ao menos para os rapazes), é uma responsabilidade incompatível e absurda alguém se colocar assim nas mãos do outro...
    E quer saber? Boa parte das pessoas que buscam pós-graduação hoje vão nessa. Recentemente um (ex-)orientando "roeu a corda" comigo alegando que "orientalistas, em geral, não cuidam bem da saúde".
    ????
    E foi prestar o concurso da ABIN, com sua garantia de estabilidade e, portanto, instantaneidade :-)
    Resta saber como serão sua dieta e exercícios diários.

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