A ROTATÓRIA
Faz frio na rua, mas tento acreditar que
meu vestido de mangas longas e fartas em tecido me suprirá. O vento ajudará a
secar o sangue da mão. Na pequena ladeira sinto os tornozelos pouco firmes
sobre os saltos, mas posso equilibrar a taça e a garrafa de vinho. Finalmente a
esquina, e chego nela como quem chega numa dobra da minha alma, o caminho com opções a oferecer, objetivamente quatro direções. Preciso analisar esse
número. Minhas opções não são poucas porque sou antes de tudo uma pessoa inventiva. Finalmente pisar dentro do círculo perfeito da rotatória admirada há anos tão de longe. Céus, como venta aqui... e me posiciono bem ao centro do
círculo, levanto minha taça e escolho brindar ao que virá, sem pensar em
decisões, sem forçar a saída para um dos destinos possíveis. Encaro como
triunfo estar no centro da forma recomeçando de qualquer ponto, um palco para encenar a nova aquisição, a libertadora falta do que fazer, sem
preocupações de nenhuma natureza, minha arena em que eu mesma me assisto sem
susto.
Um carro se aproxima descendo a ladeira,
mas estou protegida porque estou dentro da rotatória. Do lado oposto, como
coincidência, vem outro carro e joga um farol alto na minha direção, talvez
advertência para eu não cruzar a rua. Como resposta, o primeiro carro também
sobe o farol para cima de mim, e de repente, nas travessas perpendiculares
outros dois carros se dirigem à mesma esquina, ambos abusando da maldita luz
forte. Os carros se movimentam, mas não chegam nunca, e eu parada começo a me perceber na mira dos quatro, suas luzes me escancarando assim, essa
pessoa fazendo algo um tanto incomum a julgar pelo que seguro em minhas mãos, a
julgar pela minha paralisia, pelo meu vestido de cores psicodélicas, pelo
horário. As luzes de fato não chegam, o tempo se espichou e eu me sinto virando
uma estátua, petrificada por fora, mas me contorcendo de medo por dentro. Sou
uma farsa aqui tentando brindar, brindar para quê? Eu deveria estar em outro
lugar, então? O tempo parou, e eu estou ameaçada, protegida por nada com meu
vestido esvoaçando gelado dentro do círculo que é só um desenho no chão, meu
copo quase caindo já que minha mão voltou a doer, as
luzes como uma acusação, como advertência de que estou errada, lugar errado,
hora errada, sangue errado. Mas a errada não sou eu. Os carros e seus faróis se
aproximam como se fossem todos colidir, sem contornar meu círculo invólucro de
coisa alguma. Como eu queria minha rotatória me acolhendo melhor neste momento,
em que não precisaria ser difícil estar parada aqui. Pode ser madrugada, posso
ter vinho nas mãos, sangue escorrendo, essas estampas vibrantes revelando uma
pretensão agora mesmo desbancada de me parecer com uma pintura de Klimt, mas o
que repentinamente acorda meus olhos ofuscados dos faróis ameaçadores, faróis tão acusativos, é que neste exato instante eles apenas clareiam que
tudo o que andei enumerando ao meu redor e pretendendo me traduzir
minimamente admirável, não existe. O que existe é Olívia sozinha, e isso não é
nada saboroso nem natural. E destoa de tudo o que eu poderia julgar aceitável,
eu, a tão pronta nas definições e julgamentos de tudo. As luzes me escancaram
nessa arena inventada e para onde vim como alguém adornada e
lindamente preparada para descortinar sua absurda e desmedida miséria. Sou só.
Só de tudo. Estou nesta madrugada, largada no meio de uma encruzilhada, debaixo
de um céu roxo e sem estrelas teimando em não amanhecer, o ar não inspirando
movimento mesmo ventando assim tão forte, mesmo com os carros se aproximando
agora bruscamente e fazendo tremer tanto, porque tudo se desloca e a estagnação
é só minha, só decorrente dessa estúpida solidão.
exata e instigante a narrativa de Patrícia, um conto pessoal, mas totalmente verossímil. palmas pra escritora Patricia Maês. conto de gente grande.
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